Em recente entrevista à Folha, o novo diretor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Benedito Guimarães Aguiar Neto, defendeu o  ensino do design inteligente, corrente do criacionismo que desacredita a teoria da evolução e explica a diversidade de vida no planeta sob a óptica religiosa. O biólogo Nelio Bizzo (USP), pesquisador da Rede CpE que estuda o ensino da evolução nas escolas, comenta em entrevista sobre essa proposta, destacando sua incostitucionalidade e dando dicas de como abordar o assunto em sala de aula.

O criacionismo deveria ser ensinado em “contraposição a teoria da evolução”? Essa contraposição faz algum sentido?

De fato, essa proposta não faz o menor sentido, ainda mais se for entendida no contexto do ensino fundamental. O criacionismo é parte de doutrinas religiosas, que não podem ser parte de conteúdo de disciplinas obrigatórias no Brasil. Isso contraria a legislação federal e a própria Constituição Federal. A Teoria da Evolução é parte dos conteúdos curriculares no Brasil e em todos os países economicamente desenvolvidos.

Quais seriam as implicações de inserir no currículo escolar o criacionismo?

Do ponto de vista legal isso teria implicações sérias, pois se estiver sendo ministrado ao lado da teoria da evolução, em disciplina científica, de matrícula obrigatória, se estará afrontando do Art 210, §1º. da Constituição Federal. Ele pode ser ensinado nas aulas de ensino religioso, mas neste caso a matrícula não pode ser obrigatória.

Na sua visão, qual é o impacto do currículo religioso na Educação de um estado laico?

Em um estado constitucionalmente laico não pode haver ensino religioso nas escolas públicas. Este é o caso de países como Estados Unidos, França e Portugal. Daí talvez se explique porque ativistas religiosos desses países busquem parcerias no estrangeiro para fazer o que não podem em seus próprios países. Esse é o tema de um livro recém-lançado nos Estados Unidos, focalizando especificamente o crescimento das atividades de grupos estadunidenses no Brasil [Oliveira & Cook, Evolution education and the rise of the creationist movement in Brazil. Lanham (MD): Lexington Books, 2019].

Qual é a melhor forma de ensinar a teoria da evolução nas escolas sem perder de vista o diferente background cultural/religioso dos alunos?

Temos estudado muito esse tema há mais de vinte anos. É preciso deixar claro que você pode estar doente e rezar para se curar, mas que nenhum religioso vai te orientar a não seguir as indicações médicas. Da mesma forma, você pode ter uma religião e estudar teorias astronômicas heliocêntricas e a teoria da evolução. Esse tipo de conflito entre o texto literal bíblico e a ciência teve um marco emblemático com Galileu. Não há nenhum elemento novo com Darwin; é uma repetição do mesmo debate que teve seu auge na famosa carta de Galileu a Duquesa Cristina de Lorena, em 1615. E é interessante a citação que ele faz de Santo Agostinho, venerado por todas as denominações cristãs, quando diz que se existe contraposição entre as Sagradas Escrituras e “razão manifesta e certa” então isso significa que quem interpreta a Escritura não a compreende bem.

Que ferramentas ou argumentos os professores podem usar ao ensinar evolução quando surgir o questionamento religioso?

Eu recomendo citar Santo Agostinho, no trecho transcrito por Galileu nessa carta, ao afirmar que não são as Sagradas Escrituras que se contrapõem ao que pode ser racionalmente constatado, mas a interpretação utilizada para entender o que está nelas escrito. Santo Agostinho recomendava compreender melhor as Escrituras antes de afirmar, por exemplo, que a Terra é o centro do universo (e plana!) ou que a biodiversidade do planeta estava na arca de Noé. Podemos constatar racionalmente que isso não faz sentido com a mesma precisão com a qual se prescrevem remédios para doenças graves, como o câncer.

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