Colunista apresenta a controvérsia entre os cientistas sobre os efeitos do uso de videogames
Um dos primeiros videojogos com sucesso de público e de vendas foi Pong, lançado em 1972 . Em Pong, dois jogadores tentam acertar uma bolinha em movimento, à maneira de uma partida de tênis de mesa. Simples assim. As plataformas eram aquelas enormes máquinas que ficavam em bares ou lojas de internet, chamadas consoles. Os mais velhos devem se lembrar.
Daí em diante, essa forma de recreação virtual só fez crescer exponencialmente, alcançando hoje os dispositivos portáteis como tablets e celulares, disponíveis em qualquer lugar e a qualquer momento para qualquer pessoa de qualquer idade. Os videojogos, atualmente, têm milhões de adeptos em todo o mundo, tanto crianças como adultos, movimentam bilhões de dólares, e envolvem desde empreendedores individuais até as gigantes do entretenimento virtual.
O sucesso massivo e mundial desses jogos, especialmente os chamados videojogos de ação, os mais apreciados, suscitam interesse da mídia, mas levantam também questões importantes e preocupantes. Afinal, os videojogos fazem bem, são inócuos ou fazem mal? Como devem lidar com eles os educadores e as famílias? Positivos ou negativos, que grupos de usuários são mais suscetíveis aos seus efeitos? Existe diferença entre sexos e diferentes idades nesse aspecto? O monitoramento dos pais pode acentuar os possíveis efeitos positivos e atenuar os efeitos deletérios?
O que a Ciência tem a dizer sobre esse assunto? A Ciência aborda esse tema e os resultados têm aspectos controversos que suscitam intensas discussões entre os cientistas. Para destilar conclusões sensatas, é preciso analisar os dados científicos e usar o bom senso.
Algumas conclusões importantes já foram estabelecidas pela avaliação científica dos videojogos empreendida por grupos de pesquisa em Ciência para Educação de diferentes países. Sendo produtos tecnológicos, os videojogos podem ser abordados sob os protocolos da pesquisa chamada translacional, envolvendo desde pequenos grupos de sujeitos em projetos experimentais, até numerosas coortes em pesquisas randomizadas e multicêntricas (grupos numerosos e aleatórios de diferentes países) à maneira do que se faz para medicamentos. Diferentemente dos produtos cujos alvos são a promoção da saúde e o tratamento das doenças, para os produtos de entretenimento virtual não há regulação nem preocupação de parte das empresas em assegurar-se dos riscos e benefícios que possam ocorrer.
Para analisar essas questões, no caso dos videojogos, é preciso primeiro focalizar alguns pontos de partida: (1) o uso dos videojogos pode ser cultivado por crianças, por adolescentes ou por adultos de ambos os sexos, que essa diversidade de público pode diferenciar bastante o que esperar de bom ou de ruim nessa prática; (2) o uso pode ser esporádico e recreativo, ou então muito frequente aproximando-se da adicção e, até mesmo, profissionalizado, no caso dos jogadores que disputam campeonatos e torneios; (3) o conteúdo dos videojogos pode ser claramente abstrato, como Pong, Tetris e outros; ou dotado de um enredo, como o pioneiro Space Invaders, o contemporâneo Call of Duty, e muitos outros; (4) a natureza do conteúdo dos videojogos pode ser pacífica e educativa, como Math Rescue e Minecraft ou claramente violenta e agressiva, como God of War e Assassin’s Creed.
Dois grupos de pesquisa se destacam no estudo dos videojogos e exemplificam bastante bem que a controvérsia dos benefícios em contraposição aos malefícios alcança também a comunidade científica, e deve ser bem analisada para distinguir o joio do trigo. Um desses grupos é dirigido pelo psicólogo Craig Anderson, da Universidade Estadual de Iowa, nos Estados Unidos. Anderson e seus colegas realizaram vários estudos de tipo epidemiológico para verificar as consequências dos videojogos de conteúdo violento sobre os usuários. O outro grupo é dirigido pela neurocientista Daphne Bavelier, da Universidade de Genebra, na Suíça, e também da Universidade de Rochester, nos EUA. Bavelier adota uma abordagem experimental, utilizando grupos menores de jovens, em estudos controlados. Ambos os grupos são bastante sérios e cuidadosos em seus trabalhos.
Após uma série de estudos em diferentes países, o grupo de Anderson publicou, em 2014, uma pesquisa com 3 mil crianças e adolescentes de escolas primárias e secundárias de Cingapura, sendo 73% do sexo masculino. O estudo foi de tipo longitudinal, isto é, realizado ao longo de 3 anos com testes anuais. Os estudos longitudinais são mais poderosos, conceitualmente, pois analisam os mesmos sujeitos ao longo do tempo e permitem assim chegar a conclusões mais robustas sobre causas e efeitos. O objetivo do estudo era avaliar se o uso intensivo de videojogos de conteúdo violento impacta na agressividade dos jogadores frequentes mais do que dos não-jogadores ou jogadores moderados, e se os mediadores dessa possível influência seriam a cognição de agressividade, ou seja, a avaliação que as pessoas fazem se determinadas situações têm ou não conteúdo agressivo. Também avaliaram a empatia, capacidade de estabelecer um vínculo emocional positivo com outras pessoas.
O resultado foi categórico: o uso habitual e prolongado de jogos de ação violentos aumenta a agressividade dessas crianças e jovens em função do tempo e da frequência de uso, sendo esse efeito mediado pelo embotamento da sua capacidade de avaliar situações violentas como tais. Por exemplo: perguntados se ficavam indignados com uma cena de agressividade urbana, respondiam negativamente. Além disso, os autores observaram uma redução da empatia dos jogadores, isto é, menor capacidade de se identificar afetivamente com outras pessoas. Essa influência independeu do monitoramento dos pais, foi equivalente nos meninos e nas meninas e um pouco maior em crianças mais jovens (8-10 anos) do que nos mais velhos (11-14 anos).
O mesmo foi observado nos Estados Unidos, Finlândia, Alemanha, Japão e Canadá, em outros estudos. Os autores, de um modo geral, descrevem quatro efeitos dos videojogos violentos: o efeito-agressor (os usuários ficam mais agressivos), o efeito-vítima (os usuários ficam mais temerosos em face ao mundo), o efeito-testemunha (ficam mais indiferentes à violência) e o efeito-apetite (quanto mais jogam, mais querem jogar).
A conclusão segue o esperado pelo senso comum: videojogos violentos, usados com frequência alta por jovens, tendem a banalizar o conteúdo violento de situações cotidianas, o que causa mais agressividade, mais passividade e mais medo diante da violência.
Mas a coisa não é tão simples. O grupo liderado por Daphne Bavelier realizou estudos com crianças e jovens usuários de videojogos de ação, comparando usuários frequentes (mais de 3 horas por dia) com usuários esporádicos e não-usuários. Encontraram influências positivas do uso de videojogos sobre a percepção e a atenção (Figura 3). Em artigo de revisão recente, Bavelier e seus colaboradores enfatizam alguns pontos-chaves da atenção, que são positivamente influenciados pelos videojogos. O primeiro é a atenção exógena ou dependente de estimulação – aquela provocada por estímulos externos, como os que derivam dos monitores de videojogos. Outro é a atenção endógena ou top-down, produzida e controlada pelo próprio indivíduo (controle atencional). A exógena é mais simples e direta, pois depende de algo externo que captura a percepção do indivíduo. A atenção endógena, por outro lado, é uma propriedade que precisa ser aprendida, pois exige do indivíduo o controle ativo do foco, mesmo na presença de distratores em volta. É importante, por exemplo, quando lemos um livro em um ônibus ou um trem.
Em um trabalho recente, publicado em 2014, e liderado por Vikranth Bejjanki, o grupo de Bavelier estudou jovens de ambos os sexos, em torno de 20 anos de idade, alguns deles usuários de videojogos de ação, outros de videojogos sem ação e ainda outros, não-usuários. Compararam os três grupos em tarefas de percepção visual que requerem atenção endógena e, além disso, treinaram não-usuários com ambos os tipos de jogos, realizando assim um tipo de estudo longitudinal de pequeno grupo, semelhante ao de Craig Anderson, descrito anteriormente.
Os resultados permitiram várias conclusões: os usuários de jogos de ação têm melhor controle atencional do que os que usam jogos sem ação; os não-usuários, depois de serem treinados em jogos de ação, também se desempenham melhor que os treinados em jogos sem ação; e, além disso, os efeitos positivos desses videojogos subsistem durante pelo menos 12 meses. Mas, será que esses jovens aprendem a controlar melhor a atenção exclusivamente para as tarefas perceptuais que os pesquisadores usaram nos primeiros experimentos? Ou será que o melhor desempenho se espraia para outras tarefas? A segunda opção demonstrou-se verdadeira: os usuários de videojogos de ação se tornavam capazes de um melhor desempenho em outras tarefas, diferentes das primeiras. A conclusão dos autores foi que esses jovens “aprenderam a aprender”.
Pode-se depreender desses dois grupos de trabalhos que os videojogos de ação têm efeitos positivos sobre a atenção e a aprendizagem, mesmo usados com periodicidade relativamente baixa que não induz ao vício. No entanto, seu conteúdo frequentemente violento provoca malefícios: redução da empatia e aumento da cognição e de comportamentos agressivos.
É claro que muito trabalho científico ainda precisa ser feito sobre o assunto, mas o que foi feito já pode levar a sugestões de bom senso e utilidade educacional: os videojogos de ação são positivos para “aprender a aprender”, ou seja, aprender a focar a atenção em meio a distratores externos e internos. No entanto, a ação não deve conter violência e agressividade, pois as suas consequências são negativas para os usuários e, portanto, para a sociedade. Como resolver esse dilema, é algo bastante complexo, pois os atuais videojogos – de ação e conteúdo violento – tornaram-se uma fonte de consumo de massa e lucros bilionários. Essa parte do problema, no entanto, foge da alçada dos cientistas e torna-se um problema de toda a sociedade.
A. Gentile e colaboradores (2014) Mediators and moderators of long-term effects of violent video games on aggressive behavior. Journal of the American Medical Association (Pediatrics), vol. 168, pp. 450-457.
A. Anderson e colaboradores (2010) Violent videogame effects on aggression, empathy, and prosocial behavior in Eastern and Western countries: a meta-analytic review. Psychological Bulletin 136:151-176.
Cardoso-Leite e D. Bavelier (2014) Video game play, attention, and learning: how to shape the development of attention and influence learning? Current Opinion in Neurology 27:185-191.
R. Bejjanki e colaboradores (2014) Action video game play facilitates the development of better perceptual templates. Proceedings of the National Academy of Sciences USA, vol. 111:16961-16966.
Excelente texto, obrigado pela disponibilidade.
Obrigado pela divulgação científica de qualidade!
Há uma preocupação muito grande com jogos ditos violentos, porém pressuponho que os malefícios seriam similares, para esse mesmo grupo estudado, caso eles fossem interessados em filmes violentos. E filmes são bem mais antigos que jogos, e ainda não vi pesquisa nesse sentido sobre os mesmos… No fundo, o que tem que ser respeitado é a faixa etária em relação ao conteúdo exposto. Jogo videogames desde os meus 6 anos (tenho 39 anos), já joguei jogos de todos os tipos, não tive nenhum ou pouco contato com jogos violentos na infância, da mesma forma que não assistia filmes violentos, e só me identifico com os efeitos positivos citados nesta postagem.