Por Izabel Hazin, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN e pesquisadora associada da Rede CpE, e Jorge Tarcísio da Rocha Falcão, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN

Um professor de matemática, numa roda de conversa formativa tempos atrás, nos confiou sua convicção de que “matemática não é como piolho, que dá na cabeça de todo mundo”. Um outro comentou que, para ele, ensinar matemática seria como jogar os alunos à água, com profundidades variadas, sabendo-se que alguns conseguiriam sobrenadar e sobreviver, já outros… Por outro lado, uma jovem aluna nos segredou que ela e a matemática eram “ultra, mega, super, power inimigas”…

Os contextos de ensino (relatos das professoras e professores) e de aprendizagem (relatos das alunas e alunos) costumam ser povoados de depoimentos atravessados por vivências não muito prazerosas. Vivências que se materializam no baixo rendimento das crianças brasileiras em matemática, aferido pelas ferramentas nacionais e internacionais.

Se considerarmos o desempenho do Brasil no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) de 2022, identifica-se que, mais uma vez, a matemática apresenta-se como o grande gargalo da educação brasileira. Apenas 1% dos estudantes brasileiros alcançou os níveis considerados mais elevados, quando conseguem resolver problemas complexos. Por outro lado, 75% dos estudantes sequer atingiram os níveis considerados básicos para o exercício da cidadania através do uso de conceitos matemáticos no seu dia-a-dia.

A questão dos desafios que cercam o ensino e a aprendizagem da matemática tem gerado várias crenças, tanto no meio acadêmico-científico quanto dentre os profissionais envolvidos – professores e gestores escolares – além das famílias e as alunas e alunos (Da Rocha Falcão e Hazin, 2007).

Muitas dessas crenças têm sido desautorizadas por pesquisas e trabalho em sala de aula, apesar de ainda sobreviverem – trataremos de algumas delas aqui. Tentaremos igualmente contribuir para a questão que muitas vezes tira o sono das professoras e professores de matemática, notadamente nos níveis fundamental e médio – o que caracteriza um(a) bom (boa) professor(a) de matemática, e quais os caminhos para consolidar essa competência, para alcançar a sonhada consciência tranquila do trabalho bem-feito?

 

Revisitando nossas crenças acerca do ensino e aprendizagem da matemática na escola

 

1. Quais são as principais fontes de dificuldade?

Uma revisão da literatura nas últimas décadas (Da Rocha Falcão, 2003, 2023) nos permitem apontar três principais domínios que explicam grande parte das referidas dificuldades, ou como muitos preferem denominar, obstáculos.

Em primeiro lugar, haveria os obstáculos epistemológicos, que aludem a dois aspectos interligados: muitos dos conceitos matemáticos demandam esforço cognitivo importante. Isso não quer dizer que estejam fora do alcance da maioria das pessoas (esse é um mito que trataremos mais adiante), mas que demandam esforço para sua compreensão, pois inclusive os conceitos matemáticos compõem campos conceituais – a compreensão da adição é enriquecida pela compreensão da subtração, no campo conceitual das estruturas aditivas (Vergnaud, 1990).

Além do mais, alguns conceitos matemáticos parecem estar em conflito com os chamados conceitos “cotidianos”, ou a matemática do dia a dia. Como o jovem aprendiz de matemática vai lidar com o fato de que a solução de um problema sobre “perda” de bolinhas de gude seja resolvido através de uma operação de adição, como no problema “João tinha um tanto de bolinhas de gude no início do jogo, perdeu cinco e ficou com três; quantas bolinhas ele tinha ao iniciar o jogo?”

Outro grupo de obstáculos dizem respeito ao que alguns pesquisadores tratam como individuais, relacionados ao aprendiz. Cabem aqui desde aspectos relacionados à chamada “matofobia”, aquela vivência interna aludida na abertura desse texto em termos de medo/horror/ansiedade diante da matemática (e do(a) professor(a) de matemática (Hazin, 2000), como igualmente aspectos relacionados a aspectos do desenvolvimento individual, integridade dos canais sensoriais, e eventuais quadros neurológicos e do neurodesenvolvimento que demandam assistência específica (Hazin, 2006).

Aspectos específicos de cada aluno(a) podem efetivamente demandar atenção e cuidados específicos, mas desde logo é preciso deixar nítido aqui que aquilo que cada um de nós pode fazer, em termos de ensino e aprendizagem, pode e deve levar em conta e se beneficiar de auxílios ou próteses da cultura – desde óculos para correção da visão e outros quadros até a informática educativa, com seu potencial e riqueza, além da mediação indispensável do professor.

A menção ao professor nos conduz ao terceiro grupo de obstáculos: aqueles denominados genericamente de didáticos, abarcando em primeira instância o (a) própria(a) professor(a), bem como suas ferramentas principais, dentre elas o livro didático. De fato, cabe ao(à) professor(a) papel de mediação crucial. Aquilo que o(a) aluno(a) não consegue entender / resolver sozinho, poderá começar a entender graças a esse apoio, essa ajuda, essa exemplificação do professor.

Cada professor(a) que nos lê aqui terá seu depoimento a fazer: o uso do popular Material Dourado como suporte para compreensão do sistema de numeração decimal, o uso das pizzas em fatias para compreensão dos números fracionários, e mais recentemente, o uso de plataformas informatizadas para a compreensão da geometria euclidiana (como é o caso do Cabri-Geometre). Este terceiro grupo de obstáculos nos remete, então, a tópico de interesse aqui, tratado em seguida.

 

2. O que caracteriza o(a) bom (boa) professor(a) de matemática?

Levantamentos que temos feito entre os próprios professores de matemática evidencia, com frequência destacada, o papel do “saber matemática” como condição fundamental e incontornável para ser um bom professor nesse domínio. É crucial, claramente. Gérard Vergnaud nos chamou a atenção para que o conhecimento é sempre “conhecimento de alguma coisa”. Mas, prezado(a) colega, não é suficiente.

Pelos menos dois outros aspectos precisam ser considerados: primeiro, é preciso consideração e respeito pela matemática que seus alunos já sabem. E eles/elas sabem! Sabem e se revoltam com alguns “absurdos” da matemática escolar, como o princípio segundo o qual a multiplicação de dois números negativos tem como resultado… um número positivo! Pedreiros, carpinteiros, cozinheiras, mecânicos de automóvel e jovens aprendizes sabem certa matemática – aquela que lhes permite lidar não somente com a vida escolar, mas também extra-escolar (Carraher, Carraher e Schliemann, 1988), e essa matemática precisa ser respeitada e considerada.

Segundo, é preciso continuar sempre a estudar matemática e sua didática, mas também cuidar de rever certos mitos renitentes… Dentre estes, ressaltaríamos pelo menos os três que se seguem.

 

3. Revendo velhos mitos:

1) “Matemática são números!” Números são parte importante, mas e a álgebra? A geometria? Matemática diz respeito a um sistema concatenado e coerente de princípios, que nos habilita a construir modelos e resolver problemas.

2) “O concreto vem antes do abstrato”, portanto aritmética vem antes da álgebra. Ora, concreto e abstrato se completam mutuamente – crianças bem jovens são capazes de lidar com relações entre grandezas não numéricas!

3) “Nem todos(as) têm cabeça pra aprender matemática” – ora, todos e todas têm cabeça para certa matemática, cujos limites devem ser tratados pelo professor como uma abertura, e não uma porteira!

Além desses mitos renitentes a superar, dentre alguns outros (Da Rocha Falcão e Hazin, 2007), cabe um ponto importante, que tem inclusive relação com a própria saúde e bem-estar do professor. É com ele que fechamos essas breves considerações.

 

Conclusão: o professor de matemática como trabalhador em seu coletivo

O espaço de conversa entre colegas-professores, seja no café da sala dos professores, seja nos grupos de estudo e formação continuada, é uma ocasião de uma riqueza imensa, e não substituível por agentes externos, por mais sofisticados que sejam eles – como os formadores-pesquisadores oriundos do mundo acadêmico. O espaço de diagnóstico e ação de cada professor, em sua sala de aula, com seus alunos e alunas, deve ser reconhecido e respeitado – para começar, pelos próprios professores. Cada trabalhador, independente de seu ofício ou domínio de trabalho, tem uma cultura acumulada que é só sua. Fica, portanto, o convite e o incentivo para que cada professor de matemática que venha a ler esses breves pontos defenda e preserve esse princípio fundamental de seu poder de agir, e de ser o professor de matemática que quer e pode ser.

 

Para ler mais

Carraher, T.N., Carraher, D.W. & Schliemann, A.D. (1988) Na vida dez, na escola zero. São Paulo, Cortez.

Da Rocha Falcão, J.T. (2003; 2023) Psicologia da Educação Matemática: uma introdução. Belo Horizonte, Autêntica Editora.

Da Rocha Falcão, J.T. (2017) Do engenheiro didático ao trabalhador em risco psicossocial: vivências do professor de matemática. Jornal Internacional de Estudos em Educação Matemática. v.10, n.2, p. 123-129

Da Rocha Falcão, J.T., Hazin, i. (2007) Dez mitos acerca do ensino e da aprendizagem de matemática. Pesquisas e práticas em educação matemática. Vol. 1, no. 1, pp.27-48, 2007.

Hazin, I. (2000) Auto-estima e desempenho em matemática: uma contribuição ao debate acerca das relações entre cognição e afetividade. Dissertação de mestrado não-publicada. Recife, Pós-Graduação em psicologia, Universidade Federal de Pernambuco.

Hazin, I. (2006) A atividade matemática de crianças com epilepsia idiopática generalizada do tipo ausência: contribuições da neuropsicologia e da psicologia cognitva. Tese de doutorado não-publicada, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva – UFPE

Ministério da Educação (2022). https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/divulgados-os-resultados-do-pisa-2022

Vergnaud, G. (1990) La théorie des champs conceptuels. Recherches en Didactique des Mathématiques, 10-23, 133-170.

 

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