Pesquisador desfaz mitos sobre este transtorno de leitura e destaca a importância de conduzir estudos baseados em evidências para o avanço dos níveis educacionais no país.


“Free books will not eradicate reading problems any more than free fruit and vegetables will eradicate obesity.”
(K. Asbury, 2015)

 

Se uma criança passa pelo ensino fundamental sem desenvolver a competência para ler, o sistema escolar tem de entender o porquê. No Brasil, fracassa-se sistematicamente na identificação dos obstáculos para o desenvolvimento da educação. E os motivos são diversos. Um deles, que abordarei neste espaço, envolve um transtorno de aprendizagem: a dislexia.

Ao quarto ano do ensino fundamental, pouco mais da metade dos alunos consegue atingir um nível de leitura esperado para a idade. Como explicar este dado da realidade?

Conforme disse antes, as dificuldades da educação brasileira não carecem de uma resposta. Da parte da ciência, especialmente da neurociência, já há algumas. Talvez seja mais importante e frutífero considerar também como a educação brasileira e seus tomadores de decisão procedem para enfrentar o problema.

Nas universidades, por exemplo, fala-se de tantas outras competências com substantivos bonitos, como letramento, e políticas, como cidadania. O leitor já deve conhecer. Porém, pouco se fala sobre como fazer, e o que fazer, com base em evidências. Ou seja,  falta perguntar se realmente estamos adotando procedimentos que funcionam, e os índices de desempenho escolar indicam que não sabemos bem o que estamos fazendo. Depois vêm as críticas de impacto com adjetivos fortes: medicalização e “patologização” da educação, e por aí vai. Todas estas palavras denotam lutas políticas, que muito pouco têm a dizer sobre a cognição humana, o modo como aprendemos ou as dificuldades que se põem para isso.

A ausência de um esforço e uma resposta conjunta, sem demarcação de territórios ideológicos, e de uma capacidade de dialogar com as ciências que tentam contribuir para a educação coloca-se como obstáculo para o aprimoramento do ensino no Brasil. Uma das consequências deste obscurantismo é o pouco entendimento e a ausência de políticas embasadas em evidências sobre as dificuldades que afetam o aprendizado diretamente. Um deles, de interesse aqui, é a dislexia.

A dislexia é uma dificuldade inesperada de aprender a ler. Inesperada porque ocorre em crianças que apresentam condições normais de aprendizado. São crianças sem déficit cognitivo, sem alguma outra patologia ou estresse crônico, entre outros fatores que possam afetar o desenvolvimento cognitivo. Porém, diferentemente de seus colegas, elas leem muito devagar e, portanto, têm dificuldade de compreender um texto escrito. Perceba o leitor que a compreensão oral, por exemplo, não está necessariamente afetada. A questão é a compreensão leitora, como consequência de uma leitura pouco fluente. Esta é uma palavra-chave na dislexia: fluência.

A fluência leitora é a habilidade de ler com uma velocidade adequada, de maneira a permitir que o leitor forme uma ideia sobre o texto. Todos nós temos uma memória “operacional”, do aqui e do agora, que usamos para processar o que acontece em cada momento (que usamos para processar este texto, por exemplo). Agora, imagine sobrecarregar esta memória com uma leitura lenta, difícil (mal comparando, é como se pegássemos um texto em uma língua estrangeira que pouco conhecemos, indo ao dicionário a toda hora). Ao chegar ao final do texto, fica difícil formar a ideia principal de todo o conjunto se a leitura for, desta forma, tão lenta e laboriosa. Esta é a dificuldade da criança disléxica. Não é preguiça, não é invenção ou desculpa; muito menos “patologização” (dislexia não é doença, ver os mitos, abaixo). Temos de lembrar que nosso cérebro não é programado biologicamente para ler. Ele é, isto sim, programado para compreender a oralidade. A leitura é uma aquisição cultural, que depende de aprendizagem. Em algumas pessoas, as adaptações necessárias para aprender a ler ocorrem com alguma dificuldade.

Mitos sobre a dislexia:
1. A dislexia é um problema de visão: a dislexia não está relacionada com problemas visuais. O processamento visual geral, no cérebro da pessoa com dislexia, também acontece normalmente. A dislexia afeta apenas o processamento visual do código escrito.

2. A dislexia é um problema social: a dislexia não vê classe social, sexo, etnia, cultura ou qualquer outro fator social. Ela afeta a todos. Identificamos, por exemplo, crianças com coeficiente de inteligência altíssimo, de famílias de classe média-alta mas, mesmo assim, disléxicas. O diagnóstico, por isso mesmo, depende da exclusão de fatores sociais e psicológicos que possam estar na raiz da dificuldade de aprender a ler.

3. A dislexia passa com o tempo: a dislexia não é uma doença, uma patologia. Não se busca “cura”, nem há como medicá-la com remédios (até por isso, a discussão sobre uma possível medicalização da dislexia não faz sentido). O leitor disléxico sempre enfrentará a leitura como um trabalho mais lento e árduo que seus pares. Por isso, é preciso desenvolver estratégias e adaptar/personalizar o trabalho de leitura com quem sofre desse transtorno.

Nas palavras de um comitê formado para a integração entre Ciência e Primeira Infância (United States Committee on Integrating the Science of Early Childhood Development), a aquisição da linguagem oral é um processo resistente, forte e que supera muitos obstáculos. A aprendizagem da leitura, por outro lado, é um processo frágil. Para a oralidade, temos um circuito neural inato, e essa se desenvolve, em geral, independentemente de dificuldades econômicas e falta de escolaridade. A leitura, por sua vez, depende de instrução, é frágil.

O nosso cérebro não está programado para ler. Por isso, para que possamos aprender a ler passamos por um processo de adaptação que produz mudanças significativas nos circuitos da visão do cérebro humano. Isso mesmo: é a visão que está envolvida. A principal mudança é a adaptação dos circuitos neurais responsáveis pelo processamento visual ao processamento específico da escrita. É preciso que esses circuitos visuais acoplem-se aos da linguagem oral, como um ponto de entrada de informação em outra modalidade (assim como um computador pode ter entrada de informações pelo teclado ou por reconhecimento de voz).

Existe uma região na fronteira entre os lobos temporal e occipital do cérebro que se adapta durante o processo de leitura e passa a processar, especificamente, a escrita. Esta região foi, inclusive, nomeada pelo neurocientista francês Stanislas Dehaene e seus colaboradores de Área da Forma Visual das Palavras (veja região em vermelho na figura). Depois do processamento visual primário, esta região identifica, especificamente, as letras e, a partir dela, o processamento da leitura propaga-se para o restante do cérebro por meio das conhecidas rotas fonológica (ou dorsal) e léxica (ou ventral). Esta região serve como uma ponte entre o sistema visual e o circuito da linguagem no cérebro. E o que todo esse processo tem a ver com a dislexia?

cerebro_dislexia

A região que identifica as palavras como tais (em vermelho) distribui essa informação a duas rotas ou circuitos (em rosa) que passam por centros da linguagem oral (em verde) e chegam ao lobo frontal. É esta região em vermelho a responsável pelo processamento visual das palavras, situada entre os lobos occipital e temporal do cérebro, que apresenta menor ativação nos disléxicos. A região em amarelo, por exemplo, trata do processamento visual geral, e não é alterada.

A leitura trabalhosa das pessoas com dislexia está relacionada com esta adaptação que precisa acontecer no cérebro. Quando aprendemos algo novo e praticamos e desenvolvemos nossas novas habilidades, o cérebro forma circuitos que são ativados para resolver ou repetir a solução de um problema. Ele “aprende” quais regiões tem de ativar para resolver um problema. É como formar um algoritmo que se prepara para a resposta a um problema. O que acontece no cérebro da criança disléxica é que este circuito que precisa se formar, não se forma ao tempo e com semelhança às outras crianças que aprendem a ler sem maiores percalços.

Há uma quantidade significativa de estudos que mostram, em diversas línguas, como o cérebro das crianças disléxicas não se adapta ao processo de aprendizagem da leitura. Em termos simples, para a dislexia seria como se a leitura estivesse sempre em processo de desenvolvimento, de achar o caminho certo. A escrita é um código. Para o disléxico, a solução deste código não se completa e representa um desafio constante no nível da palavra. Para quem viu o filme “O Jogo da Imitação”, para o disléxico é como se, todo dia, ele tivesse que reprogramar a “máquina Enigma”, que decodificava as mensagens secretas do exército nazista durante a II Guerra Mundial.

E por que a dislexia como um desafio? Além  das dificuldades enfrentadas com algumas frentes que tentam simplificar toda e qualquer dificuldade de aprendizagem como se fosse apenas um problema do meio social, temos o desafio de sair do obscurantismo que essa visão estreita prolonga, e entender a base biológica do transtorno. A partir daí, poderemos utilizar esta informação para propor abordagens educacionais personalizadas para as dificuldades destas crianças.

No Instituto do Cérebro, crianças com dislexia passam por exames de imagem cerebral em pesquisa que busca entender melhor as bases biológicas do transtorno.  (foto: Cristiane Weber/InsCer/Divulgação)

No Instituto do Cérebro, crianças com dislexia passam por exames de imagem cerebral em pesquisa que busca entender melhor as bases biológicas do transtorno. (foto: Cristiane Weber/InsCer/Divulgação)

Escrevo aqui sobre este desafio com um pouco de experiência. No Instituto do Cérebro da PUC do Rio Grande do Sul, temos o projeto ACERTA -Avaliação de Crianças em Risco de Transtornos de Aprendizagem, em parceria com o Laboratório de Linguagem e Processos Cognitivos (Labling) da Universidade Federal de Santa Catarina, e o Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que, desde 2013, tenta entender melhor a dislexia no Brasil e interagir com professores de ensino fundamental. Uma das frentes do projeto é um ambulatório no qual trabalhamos diretamente com a avaliação de mais de duas centenas de crianças com dificuldade de leitura cujos pais buscaram nosso apoio, entre as quais identificamos mais de cinquenta com dislexia. Estas, além da avaliação pelos especialistas do projeto, passam por um exame de neuroimagem de ressonância magnética estrutural e funcional para identificar alterações nos circuitos cerebrais da leitura. A partir de todo esse trabalho, buscamos entender melhor as bases biológicas da dislexia nas nossas crianças.

Com o entendimento desta base biológica do problema, podemos partir para abordagens personalizadas de tratamento, como já abordado na coluna CONECTA anterior do professor Roberto Lent, que apresentou o Reading Acceleration Program, de Israel. Outra abordagem personalizada interessante, baseada em anos de estudos empíricos, levou ao desenvolvimento do programa Graphogame, criado por pesquisadores da universidade finlandesa de Jyväskylä e do instituto Niilo Mäki.

Em formato de jogo digital, a ferramenta trabalha os fundamentos das associações entre letras, sílabas, palavras e sons. Com apenas 10-15 minutos de jogo por dia, observou-se melhora significativa na fluência da leitura em diversas línguas europeias e africanas.A ferramenta já está inclusive em desenvolvimento na versão em português brasileiro pelo nosso grupo do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul e esperamos que seja testada com as crianças do projeto ACERTA e lançada já neste ano de 2016. Para o leitor fica a mensagem de que a ciência pode e tem contribuído para o entendimento e a melhoria da qualidade de vida de crianças que enfrentam a dislexia.

 

Sugestões para Leitura

Asbury K. (2015) Can genetics research benefit educational interventions for all? The Hastings Center Report, vol. 45: pp. S39–42.

Shaywitz SE. (2008) Vencer a dislexia. Porto: Porto Editora.

Dehaene S. (2012) Os neurônios da leitura. Porto Alegre: Penso Editora.

Costa AC, Toazza R, Bassoa A, Portuguez MW, Buchweitz A. (2015) Ambulatório de aprendizagem do projeto ACERTA (Avaliação de Crianças Em Risco de Transtorno de Aprendizagem): métodos e resultados em dois anos. In: Salles JF, Haase VG, Malloy-Diniz L, editores. Neuropsicologia do Desenvolvimento: infância e adolescência. Porto Alegre: Artmed, pp. 151–158.

Uma resposta

  1. Flavia Estill

    Se a dislexia esta associada a decodificar com a visão como seria se o disléxico aprendesse o braille?

    Responder

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