Pesquisadora associada da Rede Nacional de Ciência para Educação, Maria Regina Maluf diz: aprender o alfabeto, correlacionando letra e som.
Por Sandra Machado
Criada em novembro de 2014 por um grupo inicial de 30 cientistas de universidades brasileiras, a Rede Nacional de Ciência para Educação (Rede CpE) se organizou como associação sem fins lucrativos. Hoje, ela conta com mais de cem pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e instituições de ensino e pesquisa do país, unidos pelo objetivo de compartilhar conhecimentos e de realizar pesquisas científicas que possam promover melhores práticas e políticas educacionais, baseadas em evidências. Estes profissionais assumiram como missão fazer e fomentar a chamada pesquisa translacional em Educação, ou seja: não apenas gerar conhecimentos básicos sobre aprendizagem e ensino, mas também levar os conhecimentos adquiridos no laboratório para a realidade da escola.
Maria Regina Maluf é uma dessas pessoas. Pesquisadora associada da Rede CpE, é doutora em Psicologia pela Universidade de Louvain, na Bélgica, e Livre Docente em Psicologia Escolar pela Universidade de São Paulo. Vem trabalhando ativamente na área da Educação desde que voltou ao Brasil, após sua formação, seja como professora, seja como pesquisadora e orientadora em cursos de pós-graduação. Atualmente dá aulas de Psicologia do Desenvolvimento e da Educação no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e também de Psicologia do Desenvolvimento no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Nesta entrevista, ela faz uma análise da atual situação da Educação brasileira hoje, em especial dos resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA).
De que forma a Neurociência pode auxiliar a Educação?
A Neurociência é uma ciência nova que nos revela as bases biológicas de tudo, não apenas da Educação. Dispomos de um centro de processamento cujo núcleo é o cérebro. A tecnologia atual permite conhecer seu funcionamento, o que tem um impacto sobre a aprendizagem também, inclusive sobre os mecanismos necessários para aprendermos a ler e a escrever. No caso da linguagem oral, qualquer criança aprende a falar pela experiência porque a habilidade já está pré-figurada na sua biologia. Mas ler e escrever são uma construção cultural. É um equívoco tratar a alfabetização da mesma maneira.
Aqui no Brasil ainda existe muito atraso e a manutenção de concepções educacionais que já foram
superadas. Não tem nada a ver com dizer para uma criança escrever do seu jeito, porque só tem um jeito certo de escrever e ela tem que aprender isto. É preciso dizer à criança: você é capaz de aprender, e não dizer que está certo o que está errado. E aí, quando é realizada a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA,) o resultado é indignante. O aluno está na escola por tanto tempo sem saber ler e escrever… Mas essas não são crianças da classe média. Nossa
escola pública gratuita acolhe os filhos de famílias semianalfabetas, mas ali ninguém lhes ensina apropriadamente. São esses que fracassam nas avaliações. Eu pergunto: que dificuldade elas têm? É baixo o percentual de crianças com problemas. Eu diria que 95% só tem mesmo problema de ensino, por estar numa escola em que não estão ensinando bem.
Quer dizer, então, que a dificuldade não está nas crianças, mas na estrutura escolar?
No Brasil, se diz para os professores: aqui nós ensinamos a ler textos, o que é um empreendimento impossível. Isso tem gerado grande parte da ineficiência do sistema. E o pior é que tudo é baseado numa crença sem evidência de pesquisas. Acontece como na época de Galileu, quando os grandes e poderosos não quiseram enxergar e diziam que não precisavam olhar para as evidências porque Aristóteles já tinha afirmado que quem gravitava em torno da Terra era o sol, e não o contrário.
Qual a melhor maneira de ensinar o sistema alfabético?
O sistema alfabético é uma invenção histórica da humanidade, criado há quatro mil anos, para escrever mais facilmente. Ele reduziu os sinais a apenas 26 letras. Imagina ter que aprender aqueles milhares de sinais chineses? Temos que aprender o alfabeto, correlacionando letra e som. É assim que se ensina a criança a ler e a escrever. Só tem um jeito. Insistir em metodologias diferentes é o que tem levado ao analfabetismo permanente no país. É triste ver, ainda, pessoas trabalhando na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) sem se informar sobre a Ciência da leitura, ou Psicologia Cognitiva da Leitura, amplamente presente em outros países.
Mesmo assim, houve alguma evolução e o documento final já se aproxima um pouco mais dessa direção. No âmbito internacional, se considera que existem formas mais ou menos eficientes de alfabetizar. Mas sempre é preciso tomar consciência da fala e se apropriar do sistema alfabético, combinando os sinais de acordo com a língua falada. Infelizmente nas escolas brasileiras existe uma crença muito politizada e influenciada pela economia por meio da qual o material vendido, no nível nacional, tem bases teóricas ultrapassadas e que, comprovadamente, não dão certo. Quanto tempo faz que se usa a mesma metodologia por aqui? Se não está dando certo, está na hora de mudar.
Essa situação é exclusividade brasileira?
O sistema alfabético de escrita é o predominante quase no mundo todo. Ele se constitui de um conjunto de letras relacionadas a sons, na relação grafema/fonema. Para ser alfabetizado, o aluno precisa adquirir a habilidade sobre a linguagem oral, tomar consciência do que falamos. Ter atenção para detalhes do tipo: palavras que terminam com a letra A, palavras longas ou curtas, e se elas rimam entre si. A isso chamamos de consciência fonológica. O próximo passo é conhecer as letras e a combinação delas. O que a Neurociência faz é mostrar esses processos: usa imagens cerebrais que apontam diferenças quando enxergamos letras, conjuntos de letras, palavras, frases e textos. O cérebro vai fazendo uso da audição e da visão para formar palavras. No ordenamento da frase, reproduzimos a mesma sintaxe que usamos na oralidade. É a chamada consciência sintática.
Precisamos, portanto, encontrar um jeito para que os aprendizes desenvolvam a habilidade que permita tomar consciência da fala. Assim, os alunos vão escrever o que falam e aprender o sistema alfabético, com letras e combinações aceitas e possíveis. Na Língua Inglesa, por exemplo, o som da fala e a relação é outra, diferente da Língua Portuguesa. Para ter sucesso na alfabetização, necessitamos desenvolver a fala da criança, o que também se aplica ao adulto que está aprendendo a escrever.
O que a Neurociência já conseguiu comprovar em termos de metodologias de alfabetização globais e fônicas?
Entendo que falar de método fônico versus método global não seja um confronto apropriado porque muitas vezes um mesmo conceito é usado por ambas as correntes com significados diferentes. Digamos, apenas, que a Neurociência mostra como o cérebro reage ao sistema alfabético de escrita. Esse conhecimento “entra” no cérebro pela audição e pelo funcionamento visual com uma constatação que tem impacto sobre os métodos de ensinar.
Surge a pergunta: como fazer para que a criança enxergue discriminando letras e conjuntos de letras? Nossa visão “bate” em pontos e decodifica um máximo de 10 letras de cada vez. O cérebro não enxerga a frase inteira. É nossa cognição que vai processando o conjunto.
Essa habilidade metafonológica já foi profundamente estudada pela ciência. Cada palavra é uma unidade significativa. O processo mais eficiente e rápido que garante que as pessoas estão aprendendo a ler e a escrever é a apreensão das palavras. Sem aprender palavras é impossível aprender frases e textos. Isso é chamado de método fônico. Aqueles que o criticam fazem confusão com o conceito de instrução fônica, do início do século XX, que improvisava formas de aprender as letras isoladas, sem levar em conta a representação do som. Uma letra isolada não é som da fala. O que funciona bem é apresentar esses pedacinhos que se consegue
representar, em palavras curtas como “pé”, “sol” ou “não”. A criança entende que vamos usar as letras para escrever o que falamos. Para a Neurociência, não adianta achar que a criança ou o adulto começa aprendendo a ler a frase.
Por que a Neurociência não faz parte do curso de formação de professores?
Essa pergunta tem sido mal respondida. Não se resolve a questão colocando simplesmente uma disciplina de Neurociência no curso de Pedagogia. No momento atual, se improvisam docentes para fazer a formação de professores em Neurociência, mas o que eles ensinam não é a prática. Temos uma ciência em si mesma e também a prática dos profissionais. É possível, sim, formar professores com conceitos de Neurociência, desde que esse conteúdo seja bem delimitado, conhecido. Ensinar, por exemplo, algumas hipóteses bem estabelecidas que possam ajudar na atividade de ensino, e também as relações entre teoria e prática de Neurociência.
Quais são as causas mais comuns da dificuldade de aprendizagem das crianças, particularmente na primeira infância?
Quando surgem, elas são de origem biológica, familiar, socioemocionais ou aquelas criadas pela inadequação da própria escola. As socioemocionais não dependem da escola sozinha, mas de uma equipe de atendimento. Por isso, a Educação Infantil de qualidade tem que contar com um corpo de especialistas. Quanto mais cedo uma criança tiver contato com a leitura e a escrita, melhor, porque ela vai falando e desenvolvendo o significado da fala. Para tanto é possível fazer jogos interessantíssimos já na fase da primeira infância. A criança que aprende a brincar com as palavras tem facilidade de relacioná-las, mais tarde, com a representação da fala.
Atualmente esse contato só acontece sistematicamente a partir do primeiro ano do Ensino Fundamental, mas é importante que ele comece na Educação Infantil. São apenas 26 letras que permitem escrever tudo: nomes de pessoas, de brinquedos, animais
e comidas, o que serve de aspecto motivacional. Nesta fase, alguém deve ler livros para a criança, e não apenas contar historinhas. Com isso, se torna mais interessante para ela manipular o material escrito. E, o mais importante, a criança aprende para que servem as letras.
Poderia resumir os principais marcos de desenvolvimento das crianças?
Hoje o desenvolvimento é entendido como um continuum sem cortes de estágio. Mas já se sabe que existem, pelo menos, dois grandes momentos. O primeiro é a instalação da fala. Embora o contato com a fala exista desde sempre, num dado momento a criança passa para a fase da fala expressiva, por volta dos dois ou três anos. Até então, sua relação era com a fala receptiva, de entender o que lhe diziam. A fala muda tudo – pensamentos, relacionamentos e
a expressão das necessidades. Para dizer a verdade, a criança já nasce com todos os neurônios e as conexões formadas entre eles até os dois anos são fundamentais.
Entre os dois e os cinco anos, surge o fenômeno da poda, quando o cérebro vai selecionando as conexões que vão ser mantidas dali para a frente. É nessa fase, por volta dos cinco anos, que a criança aprende raciocínio lógico, que já está mais ou menos instalado em torno dos seis anos. Por isso também o ensino sistemático, ou seja, a vida escolar se inicia aí. Vale lembrar o quanto o desenvolvimento socioemocional é importante, porque a criança precisa do outro, independentemente da idade. O desenvolvimento cognitivo, representando pela fala e pelo raciocínio lógico, também afeta aspectos socioemocionais. A criança passa a adequar funções executivas e cognitivas.
A intervenção tardia consegue recuperar eventuais defasagens no desenvolvimento
neurológico de uma criança?
Sempre é possível recuperar. Sabemos pouco sobre isso. A intervenção deve ser considerada, mesmo que tardia. Não há evidência de que perdas sejam irreparáveis.
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