Pesquisadores explicam porque que muitas pessoas que têm dificuldade com matemática também têm problemas de leitura.
Por Júlia Beatriz Lopes Silva e Vitor Geraldi Haase
É muito comum que pessoas que apresentam dificuldades numéricas (discalculia) também apresentem dificuldades de leitura (dislexia). Alguns estudos sugerem que entre 30 a 70% das crianças que apresentam um destes transtornos também apresentam o outro. Esta faixa é tão ampla porque existem diferenças significativas entre os critérios diagnósticos para identificar estes grupos em contextos de pesquisa. Às vezes, o que um estudo considera como um indivíduo com discalculia ou dislexia difere de outras pesquisas. Mas, afinal, o que a leitura tem a ver com a cognição numérica?
Para responder à esta questão, inicialmente discutiremos os principais mecanismos cognitivos associados à aprendizagem da leitura, em seguida, da cognição numérica, para, a seguir comentar sobre aspectos específicos e compartilhados entre os transtornos.
O processamento fonológico desempenha um papel bastante importante na aprendizagem da leitura de palavras isoladas. Este mecanismo cognitivo pode ser subdivido em três subcomponentes:
a) resgate lexical, associado à velocidade de resgate de representações e recordação de informações semânticas da memória de longo prazo (como a velocidade que uma criança consegue nomear uma série de letras ou números);
b) memória de trabalho/memória de curto prazo fonológica, definida como nossa capacidade de codificação e armazenamento de informações verbais ou sonoras (que pode ser observada cotidianamente na habilidade de repetir uma sequência de números);
c) consciência fonológica, nossa habilidade de percepção e manipulação dos sons da língua (como a habilidade de brincar com rimas e perceber palavras que começam com sons semelhantes).
Déficits no processamento fonológico, principalmente na consciência fonológica, são comuns em pessoas com dislexia do desenvolvimento. Existe um debate sobre outras possíveis causas das dificuldades de leitura apresentadas por disléxicos. Uma das possíveis explicações está ligada a um déficit de ativação do cerebelo, região do nosso sistema nervoso associada à capacidade de ler de forma mais automática a um prejuízo de automatização e a um déficit auditivo, ou visual. Entretanto, déficits no processamento fonológico são, dentre estes, os mais consensualmente associados às dificuldades de leitura/escrita. Além disso, intervenções que enfatizam o método de alfabetização fônica estão associadas a melhoras significativas na acurácia de leitura.
Por outro lado, a principal hipótese da cognição numérica é que um dos pré-requisitos para a aprendizagem de cálculo seria o processamento de algarismos e quantidades numérico. Esse processamento numérico, pode sua vez, pode ser subdivido em processamento não-simbólico (representação da forma analógica, como a quantidade de itens que compõem de numerosidade de conjuntos) e processamento simbólico (representações culturalmente adquiridas, como os algarismos arábicos e as representações verbais dos números). Estudos longitudinais apontam que dificuldades no processamento numérico na idade pré-escolar podem contribuir para a identificação de crianças sob risco de apresentarem dificuldades de aprendizagem da matemática.
A partir disso, pode-se concluir que dificuldades de leitura estariam associadas ao processamento de sons que constituem as palavras, enquanto dificuldades da matemática podem estar ligadas ao processamento de números, em suas diversas notações. Duas hipóteses podem então ser derivadas: crianças que apresentam dificuldades na leitura e na aritmética apresentam déficits simultâneos nos processamentos fonológico e numérico ou há algum déficit cognitivo comum que poderia estar associado a prejuízos na leitura e na aritmética? Esta é uma pergunta que ainda não foi respondida pelas pesquisas atuais. Entretanto, algumas pesquisas que avaliaram as habilidades aritméticas de pessoas com dislexia sugerem que o prejuízo fonológico também pode impactar alguns aspectos da cognição numérica.
A matemática é uma área de conhecimento bastante complexa e existem alguns de seus componentes que possuem claramente um aspecto verbal — como contagem, escrita de números, tabuada, resolução de problemas aritméticos —, enquanto outros processos, como comparação de conjuntos, não exigem acesso a representações verbais. Deste modo, é comum que estudos que investigam a associação entre discalculia e dislexia encontrem prejuízos específicos relacionados a estes aspectos verbais da matemática.
Os fatos aritméticos, ou seja, operações que podem ser resgatadas de forma automática, como a tabuada de multiplicação, são uma das grandes fontes de dificuldade matemática para crianças com dificuldade de leitura. Quando temos que responder a uma pergunta como “quanto é dois vezes três?”, é muito provável que resgatemos a resposta como se fosse uma frase armazenada em nossa memória de longo prazo, em vez de realizarmos o procedimento de cálculos. Vários estudos com estudantes disléxicos encontram associação entre o processamento fonológico e esta capacidade de resgate automático da resposta de um fato aritmético.
Som e números
Além disso, o Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND-UFMG) tem realizado pesquisas sobre a associação entre aspectos linguísticos e a transcodificação numérica. A transcodificação é a mudança de um código verbal para outro (como ouvir o número “quarenta e três”, no formato verbal oral, e transcodifica-lo para “43”). No nosso artigo “What is specific and what is shared between numbers and words?” (O que é específico e o que é compartilhado entre números e palavras?) investigamos mecanismos cognitivos específicos e compartilhados entre números e palavras e observamos que o processamento fonológico influencia a aprendizagem da leitura e a escrita de palavras, como observado anteriormente na literatura, mas também é um mecanismo cognitivo associado à leitura e à escrita de numerais arábicos.
Estes estudos referentes a associação entre processamento fonológico e cálculos e transcodificação apoiam a hipótese de um déficit comum compartilhado entre a discalculia e dislexia. Apesar de ainda não termos a resposta definitiva de por que os dois transtornos estão diretamente associados, é importante pontuar que uma metanálise recente concluiu que crianças que apresentam uma dificuldade de matemática têm aproximadamente duas vezes mais chance do que crianças típicas de apresentar uma dificuldade de leitura associada.
A moral da história é, portanto, que a aprendizagem das letras e dos números apresenta algo em comum, possivelmente o processamento fonológico como mecanismo subjacente associado. Desse modo, é importante ressaltar que, durante a avaliação de suspeita de dificuldade de aprendizagem da matemática, o profissional que acompanha a criança deve também avaliar mecanismos cognitivos gerais que podem impactar o processamento numérico e a aritmética. Além disso, a intervenção fonológica também pode contribuir para o desenvolvimento de habilidades numéricas e deve ser levada em consideração em programas de intervenção com indivíduos com discalculia que apresentam dificuldades em aspectos verbais da matemática.
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