Apoio da família e contato regular com a turma – mesmo que por vídeo chamadas – podem minimizar impactos do isolamento social na formação das crianças
O processo de aprendizado que o Gabriel* de 8 anos estava construindo junto com os colegas e professores sofreu uma ruptura com a pandemia de COVID-19. Nas primeiras semanas de isolamento, o menino com transtorno do espectro autista travava uma guerra com gritos e choro toda vez que sua mãe pegava o celular para conversar com seus professores. Hoje, passados oito meses, a sua relação com a tecnologia e a aprendizagem é outra. Com o celular na mão, sentado em uma mesa com seus materiais favoritos, o menino aguarda ansioso a vídeo chamada da professora. O tempo de duração da conversa vai depender da paciência do menino.
A adaptação aos atendimentos a distância é uma vitória para o Gabriel e sua professora – e um forte sinal de que a aprendizagem das crianças acontece mesmo fora da escola. “Vemos um sujeito emergindo deste processo, com um desenvolvimento cognitivo muito significativo”, comemora a educadora especial Karla Fernanda Wunder da Silva. Ela atende, junto com uma colega, outras cinco crianças com diversos graus de transtorno do espectro autista na Escola Municipal Especial de Ensino Fundamental Professor Luiz Francisco Lucena Borges, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Gabriel faz parte de um contingente de 1,2 milhão de alunos das redes municipais e estaduais com algum tipo de deficiência, segundo dados do Censo Escolar de 2020. “Essas crianças e adolescentes enfrentam um desafio constante de acompanhar atividades escolares, se comunicar e se inserir na rotina da escola”, reflete a pesquisadora Débora Deliberato (Unesp), associada à Rede CpE. Ou seja, suas dificuldades não começaram com a pandemia.
O pesquisador Douglas Ferrari (Ufes) acredita, no entanto, que a pandemia de COVID-19 serviu para escancarar desigualdades sociais e educacionais sofridas por esse grupo. “Há uma forte invisibilização das pessoas com deficiência, com agravamento do isolamento social de algumas pessoas. No campo da educação, muitos enfrentam a falta de acessibilidade aos materiais das aulas de ensino remoto”, afirma. A Organização Mundial da Saúde (OMS), já em março, chamava atenção para os impactos da pandemia nesta população.
O isolamento e a consequente exclusão tem sido uma reclamação constante das famílias de crianças com deficiência, relata da Silva. “A pandemia é muito mais cruel com essa população, que já está em isolamento social há décadas”, constata a educadora especial, que escreveu, junto com colegas, um artigo científico sobre o tema. Para muitas crianças com deficiência, a escola era a única forma de socialização, o que faz com que sintam a falta deste ambiente de forma mais intensa.
Durante o isolamento social, a educadora especial e sua colega tiveram que criar estratégias para manter o vínculo com sua turma da escola. Desde março, fazem vídeo chamadas com cada aluno e sua família uma vez por semana e com a turma toda a cada quinze dias.
Tecnologias e apoio familiar
As perdas geradas pela falta da escola podem ser minimizadas com planejamento e criatividade. O trabalho da educadora especial Jaluza de Souza Duarte, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, é um exemplo disso. Desde o início da pandemia, a professora e seus colegas têm se empenhado em organizar atividades para os alunos com deficiência atendidos pela rede pública de ensino a partir das vivências diárias de cada criança.
Os professores da escola municipal em que Jaluza atua enviam para as famílias kits com materiais como tinta, papel crepom, cola, tesoura, além de jogos confeccionados pelos professores. A maioria dos materiais disponibilizados aos alunos é impresso, pois leva em conta que nem toda criança tem acesso ou habilidade para lidar com tecnologias digitais. O acompanhamento dos alunos é feito por meio do aplicativo whatsapp, por mensagens e vídeo chamadas.
Para os alunos com múltiplas deficiências, cujo desenvolvimento dependia de atividades lúdicas de integração com a turma, a saída tem sido procurar atividades práticas que a família consiga executar. “Temos o cuidado de planejar atividades lúdicas que não exijam muitos recursos, com materiais que a família já tem em casa para não sobrecarregar o cotidiano dos pais e cuidadores”, conta Duarte.
Segundo os especialistas, é impossível avaliar com precisão os impactos do isolamento social no desenvolvimento das crianças com deficiência. Além de não termos distanciamento histórico para fazer essa avaliação – já que a pandemia ainda está em curso – cada criança vivenciou a situação de um jeito. Algumas até tiveram facilidade em se adaptar ao novo cenário de tecnologias educacionais digitais, segundo os relatos das professoras.
Débora Deliberato arrisca afirmar que o impacto negativo tem relação com a estrutura familiar pré-pandemia. A pesquisadora acredita que famílias com o hábito de acompanhar as atividades da criança na escola tiveram mais sucesso em se adaptar ao novo contexto e podem colher resultados positivos de desenvolvimento da criança.
Uma família mais participativa na vida escolar tem forte relação com o desenvolvimento de habilidades sociais de crianças, segundo mostrou um estudo da University of Western Australia feito com 212 pais de crianças australianas de cinco a doze anos com deficiência física.
Na visão de Karla, crianças com deficiência que conseguiram manter um contato virtual regular com a turma e com o professor durante esses meses sofrerão menos impactos negativos em comparação àquelas que tiveram contato somente com a família. “Sem contato com outras pessoas, se perdem os vínculos afetivos, a habilidade de reconhecer o outro como diferente de si mesmo. Essas crianças vão precisar de um acolhimento muito maior quando as aulas retornarem”, comenta a educadora especial.
Apesar de trazer limitações no contato social, o isolamento também criou oportunidades de aprendizagem que vão além do currículo escolar. “As crianças estão aprendendo uma série de conhecimentos, no contato mais próximo com as famílias, que a escola não leva em consideração, mas que produz crescimento pessoal”, comenta Douglas Ferrari. O ganho de autonomia para exercer atividades cotidianas, como comer, estudar e acessar o aplicativo das aulas é uma das apostas do professor, quando perguntado sobre o legado que a pandemia pode deixar para essas crianças.
*O nome da criança foi modificado em respeito ao sigilo da sua identidade.
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