Por Ronice Müller de Quadros (Universidade Federal de Santa Catarina/SC), pesquisadora associada da Rede CpE

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi oficialmente reconhecida, por meio da Lei 10.436/2002, como uma língua nacional usada pelas comunidades surdas brasileiras. A legitimação desta ação governamental se dá a partir das próprias comunidades surdas por meio dos movimentos sociais encabeçados pela Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS). Esta organização representa os surdos brasileiros em defesa de seus direitos humanos e linguísticos. O reconhecimento desta língua foi um dos resultados de suas ações junto aos representantes legais que empreitaram o processo de proposição da “Lei de Libras”, assim chamada pelas comunidades surdas. A legitimação também se dá pela sua implementação a partir do Decreto 5.626/2005 que regulamenta a lei com uma planificação linguística.

As ações implementadas a partir da publicação deste decreto incluíram a formação dos profissionais que atuam no ensino da Libras e na tradução e interpretação da Libras de/para a Língua Portuguesa. Em 2006, o Governo Federal financiou a criação e a implementação do Curso de Letras Libras Licenciatura sob a coordenação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O curso foi criado e oferecido na modalidade on-line em parceria com nove universidades federais brasileiras. Neste curso, foram formados vários professores de Libras, inclusive surdos. Em sua grande maioria, esses novos professores já atuavam no ensino da Libras, na qualidade de instrutores de Libras, sem uma qualificação formal em nível superior. Esse passo representou uma conquista importante para o reconhecimento da Libras enquanto prática linguística. Em 2008, houve um segundo oferecimento dessa Licenciatura e a criação do Bacharelado para a formação de tradutores e intérpretes.

A partir de 2009, por meio de ações de programas governamentais, tais como o Programa Reúne e o Programa Viver sem Limites, vários cursos de Letras Libras e, também, Pedagogia Bilíngue foram criados no país em todos os estados brasileiros.  Atualmente, contamos com mais de 90 doutores surdos, entre outros profissionais bilíngues, que atuam na formação de professores e tradutores e intérpretes de Libras em mais de 40 cursos de Letras Libras, espalhados pelo país. A formação desses profissionais impactou no reconhecimento do status linguístico e social da Libras em todo o Brasil e, também, na vida dos surdos brasileiros.

Ainda na mira da implementação das políticas linguísticas previstas no Decreto 5.626/2005, estava a educação bilíngue (Libras e Língua Portuguesa) para surdos.  A FENEIS aliada aos pesquisadores de Libras e da educação de surdos encabeçaram uma série de ações para implementar esta ação no contexto da educação brasileira. O Plano Nacional de Educação de Surdos (Lei 13.005/2014) incluiu a meta 4.7, propondo a educação bilíngue para surdos, inclusive em escolas de surdos.

Na sequência, em 2021, houve uma ação para inclusão da modalidade de educação bilíngue de/para surdos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileiras (Lei 14.191/2021):

 

Entende-se por educação bilíngue de surdos, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida em Língua Brasileira de Sinais (Libras), como primeira língua, e em português escrito, como segunda língua, em escolas bilíngues de surdos, classes bilíngues de surdos, escolas comuns ou em polos de educação bilíngue de surdos, para educandos surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas, optantes pela modalidade de educação bilíngue de surdos.

 

Em 2024, a FENEIS com representantes surdos e ouvintes de todo o país estiveram presentes na Conferência Nacional de Educação nas discussões sobre o Plano Nacional de Educação (2024-2034) reiterando a educação bilíngue de/para surdos como meta da educação brasileira, integrada à política de Estado da educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável. Dentro desta perspectiva, ficou documentada a proposta que integra a educação de surdos no novo plano em todas as ações do documento que tratam do monitoramento, de recursos financeiros, de ações afirmativas, formação (inicial e continuada) de professores, diretrizes curriculares, acessibilidade, linhas de pesquisa (pós-graduação), planejamento, participação,  equidade linguística, desempenho de aprendizagem. O Plano Nacional de Educação de 2024 a 2034 será votado e pode ainda contar com alterações.

A implementação da educação bilíngue na educação básica, portanto, tem sido reiterada pelas comunidades surdas há muitos anos, porque não acontece efetivamente. As políticas linguísticas e as políticas educacionais parecem estar dissociadas, de certa forma. Existe uma clareza quanto a importância de garantir a educação bilíngue para os surdos reconhecendo a condição bilíngue das crianças surdas, mas, em paralelo, nas políticas educacionais, há uma compreensão de que a educação bilíngue deva acontecer no contexto da educação inclusiva com um entendimento restrito do que seja a “inclusão”, como que necessariamente na escola da esquina.

As comunidades surdas e seus intelectuais, representados por doutores surdos, juntamente com a FENEIS, apresentam evidências da importância de tornar a Libras um acontecimento linguístico a partir do agrupamento de surdos com referências surdas presentes ao longo do desenvolvimento escolar. A aquisição da Libras é uma das bases iniciais que devem permear as práticas bilíngues desde o seu início na educação de crianças surdas.

Além disso, o ensino tendo a Libras como língua de instrução, devidamente reconhecida como primeira língua, favorece o acesso aos conhecimentos e experiências escolares aos estudantes surdos. Assim, o entendimento de “inclusão” para os movimentos sociais e intelectuais que representam os surdos e as pesquisas com a Libras, é de que o acesso a educação bilíngue precisa ser feito a partir do agrupamento de alunos surdos, preferencialmente em escolas de surdos. Se isso não é possível, ao menos, em escolas que centralizem o acesso dos alunos surdos de forma concentrada para garantir o agrupamento de surdos, com um projeto pedagógico bilíngue.

Nesses contextos, a Libras é a língua de instrução e o ensino da Língua Portuguesa acontece como segunda língua, segunda modalidade, além de todos os conhecimentos escolares estarem acessíveis na Libras e no português com pares surdos. Com isso, “inclusão” não é sinônimo de estar na escola da esquina de casa, mas sim, um espaço educacional organizado de forma bilíngue, incluindo referencias surdas, que vai garantir o desenvolvimento integral das crianças surdas. A partir da constituição integral, estes surdos participam ativamente da sociedade brasileira, portando, incluídos no dia-a-dia em diferentes espaços sociais.

O impasse na compreensão do que seja “inclusão” ainda atormenta os surdos, que permanecem vigilantes nas ações que implementam as políticas linguísticas em diferentes políticas públicas.

 

 

Para saber mais

Visite o Portal de Libras https://portal-libras.org/ e acesse publicações que discutem sobre a Libras e a educação de surdos, a exemplo:

Língua Brasileira de Sinais: Patrimônio Linguístico Brasileiro (2019) de Ronice Müller de Quadros, Bruna Crescêncio Neves, Juliana Tasca Lohn, Deonísio Schmitt, Marcos Luchi

Literatura em Libras (2021) de Rachel Sutton Spence

Gramática da Libras (2021) organizado por Ronice Müller de Quadros (v-book em Libras)

Gramática da Libras – Volumes I e II (2023) organizado por Ronice Müller de Quadros, Jair Barbosa da Silva, Miriam Royer e Vinicius Rodrigues da Silva

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