Colunista apresenta diferentes modelos conceituais para explicar a leitura e aponta que novas ferramentas são capazes de melhorar o desempenho de crianças com dislexia
Geralmente pensamos que a leitura é uma propriedade do cérebro humano aparentada da fala, de tal modo que quem é capaz de uma, é capaz da outra. Não é bem assim. Tudo indica que a fala é uma propriedade biológica da espécie humana, adquirida ao longo de prolongado percurso evolutivo, que lentamente acabou por nos disponibilizar territórios do córtex cerebral exclusivos para a função.
A leitura, por outro lado, representa uma adaptação resultante da cultura que a sociedade humana criou, durante um tempo muito mais curto do que o que garantiu a emergência da fala. As áreas cerebrais que possibilitam a leitura são “emprestadas” de outras propriedades que aí residiriam, caso a pessoa não possa – geralmente por razões sociais – desenvolver essa capacidade. É o sugere o caso dos analfabetos, cujas “áreas da leitura” se dedicam a um outro aspecto da percepção complexa: o reconhecimento de faces.
Falar, portanto, é biológico. Ler, no entanto, é cultural. Quase todos os seres humanos falam e, quando não o fazem, é difícil corrigir, pois as razões são usualmente de natureza biológica. Muitos seres humanos, no entanto, infelizmente, não são capazes de ler, e as razões são geralmente sociais. Nos dois casos há exceções que confirmam a norma: pessoas que não falam por razões sociais (emocionais, por exemplo) e outras que não leem por razões biológicas.
Nesse último grupo estão as crianças disléxicas, que os pais e professores identificam logo às primeiras tentativas de estimulá-las ou ensiná-las a ler. Essas crianças apresentam dificuldades de adquirir uma leitura fluente, apesar dos esforços para oferecer-lhes ampla e frequente exposição a materiais escritos, e independentemente de sua condição social. Em virtude da relativa confusão entre o peso dos fatores biológicos e dos determinantes sociais/culturais no caso da leitura, em comparação com a fala, é comum pensarmos que os disléxicos têm alguma coisa de errado nas áreas cerebrais dedicadas à leitura.
Veremos a seguir que não é bem assim.
O mapa das regiões cerebrais ativadas durante a leitura foi identificado por diferentes pesquisadores por meio de imagens de ressonância magnética cerebral funcional, entre os quais o neurocientista francês Stanislas Dehaene e colaboradores portugueses e brasileiros. Como em todas as funções cognitivas complexas, várias áreas cerebrais aumentam sua atividade durante a leitura. De que modo cada uma delas estaria participando?
Uma dessas regiões ficou sendo conhecida como área visual da forma das palavras, nome que levou a crer que a leitura teria uma importante base biológica perceptual: um território cerebral especializado na identificação da forma das letras e das palavras. A leitura nada mais seria que um processo de percepção de formas simbólicas complexas. Quem sabe a dislexia seria causada por uma deficiência nessa área, tornando a criança incapaz de reconhecer as palavras como tal, e de diferenciá-las de rabiscos parecidos, mas sem significado?
Logo se viu que não era tão simples assim. O circuito da leitura incluía também regiões envolvidas com a atenção, a velocidade de processamento perceptual, a inibição cognitiva, a memória operacional e o monitoramento de erros. E, de fato, as crianças disléxicas têm também dificuldades no desempenho dessas funções chamadas executivas.
Duas consequências importantes derivaram dessa constatação: um modelo conceitual da base neural da leitura e uma ferramenta (RAP, Reading Acceleration Program) desenhada para melhorar a aprendizagem da leitura pelas crianças (disléxicas ou não). O modelo conceitual foi desenvolvido pelo grupo de pesquisadores liderados por Bradley Schlaggar, da Universidade Washington, em St. Louis, EUA. E a ferramenta de aceleração da leitura foi inventada por Zvia Breznitz e seus colaboradores na Universidade de Haifa, Israel.
O modelo conceitual: leitura não é só percepção de palavras, é muito mais. Depende de duas redes de áreas cerebrais altamente interativas com as regiões de percepção visual das palavras, que mantêm o controle executivo da leitura. A primeira se chama fronto-parietal, e se destina a focar a atenção do leitor nas pistas escritas (letras, palavras). A segunda rede é conhecida como cíngulo-opercular, e se encarrega de manter vivos os objetivos (ler até o final…), além de monitorar e ajustar os erros (não pular letras nem palavras…). Trocando em miúdos, não basta identificar as palavras: é preciso reconhecer a sua ortografia, imaginar a sua pronúncia, compreender o seu significado e, além do mais, fazer tudo isso a grande velocidade de deslocamento ocular da esquerda para a direita (ou em outras direções, como acontece em línguas como o hebraico e o japonês), guardando na memória por alguns segundos o que veio antes, para ao final compreender o significado global do que foi lido. Difícil!
Quem sabe então as crianças disléxicas são plenamente capazes de ler, mas não conseguem fazê-lo com alta velocidade e atenção focada? Quem sabe então poderíamos ensiná-las a acelerar esse processo?
A esse objetivo se propôs o grupo de pesquisa do Hospital Infantil de Cincinatti, em Ohio, EUA, composto por Tzipi Horowitz-Kraus e colaboradores. Eles reuniram um grupo de crianças disléxicas de cerca de 10 anos e outro de idade parecida, capaz de ler normalmente. Ambos os grupos foram submetidos a imageamento no aparelho de ressonância magnética funcional, em repouso. Em seguida foram treinados durante 4 semanas com o programa RAP. E finalmente foram novamente imageados. Resultado: o treinamento aumentou a atividade das regiões de controle executivo, aquelas que contribuem com a velocidade de leitura e a focalização da atenção.
Nada de milagre, tampouco uma panaceia. O programa de aceleração da leitura consiste em um banco de 1.500 frases com palavras de uso frequente em diversos idiomas. O treinamento era feito pela internet, durante 4 semanas, 5 dias por semana, 15-20 minutos por sessão. Os pesquisadores tinham acesso remoto ao treinamento e podiam registrar o andamento e o progresso das crianças, medindo as variáveis da leitura: tempo e velocidade, principalmente. A compreensão era medida no final por um teste de múltipla escolha bem simples sobre o conteúdo da frase lida.
O truque principal: à medida que a leitura prosseguia (da esquerda para a direita, em inglês), as palavras iam desaparecendo pela esquerda, com rapidez regulada pelo pesquisador. Isso ia forçando o leitor a prestar mais atenção e acelerar a leitura. Literalmente, empurrava a leitura da criança.
Os resultados mostraram melhora na leitura e nas funções executivas das crianças disléxicas e também nas crianças capazes de leitura fluente.
Esse conjunto de trabalhos permite algumas importantes conclusões. Primeiro: as crianças disléxicas não têm problemas de inteligência, são tão capazes quanto todas as demais crianças. Segundo: também não têm deficiências de percepção visual e interpretação de formas abstratas. Terceiro: há um déficit de focalização da atenção visual e de retenção temporária de informações na memória, que resulta em lentidão na leitura e consequentemente na compreensão. Por último: há ferramentas sendo otimizadas, capazes de acelerar a leitura dessas crianças pelo treinamento, melhorando o seu desempenho.
Nada mau para enfrentar um transtorno que aflige cerca de 5% das crianças em todos os países, de diferentes culturas e diferentes idiomas!
Dehaene e colaboradores (2010) How learning to read changes the cortical networks for vision and language. Science, vol. 330, pp. 1359-1364.
Breinitz e B. Bloch (2010) Reading acceleration program (RAP) [software], University of Haifa, Israel: Edmond J. Safra Brain Research Center for the Study of Learning Disabilities.
C. Vogel e colaboradores (2013) Functional network architecture of reading-related regions across development. Brain and Language, vol. 125, pp. 231-243.
Horowitz-Kraus e colaboradores (2015) Increased resting-state functional connectivity in the cíngulo-opercular cognitive-control network after intervention in children with Reading difficulties. PLoS ONE 10(7): e0133762.
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