Por Marília Zaluar Guimarães (UFRJ) e Janaina Weissheimer (UFRN), coordenadoras da Rede CpE
Para 2023, o mote da campanha das Nações Unidas para garantir a equidade de gênero em relação à educação escolar é bastante direto: educação é direito dela. A igualdade entre os gêneros, na verdade, é o 5o objetivo da ONU para a Agenda 2030 que busca: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Por isso, no dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, é preciso dizer de novo: Educação é direito dela.
O direito à educação faz parte de um conjunto de direitos chamados de “direitos sociais”. Estes se baseiam na percepção da igualdade entre as pessoas e, no Brasil, esse direito é garantido pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e também pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Mesmo assim, o cenário acadêmico brasileiro ainda carrega consigo contradições e disparidades.
Hoje, as matrículas escolares são equilibradas em termos de gênero, contudo, esse cenário mais ou menos ‘igualitário’ é um tema que merece a atenção de educadores e pesquisadores. Isso porque em momentos de crise social, como a pandemia de COVID-19, as meninas e outras populações vulneráveis são as primeiras a ter que deixar a escola para trabalhar e ajudar na renda familiar. Mesmo que permaneçam na escola, elas veem sua trajetória acadêmica ser minada, muitas vezes, já na primeira infância.
Um estudo conduzido pelo psicólogo americano Andrei Cimpian mostrou que meninas com cerca de seis anos são levadas a pensar que os homens são mais inteligentes e talentosos que as mulheres. Na primeira parte do estudo, foi solicitado que meninos e meninas apontassem uma pessoa que acreditassem ser “realmente inteligente”. Aos 5 anos, tanto os meninos quanto as meninas tendem a associar o brilhantismo ao seu próprio gênero. Mas, à medida que vão crescendo e frequentando a escola, as crianças passam a endossar certos estereótipos. Entre 6 e 7 anos, as meninas começam a associar muito menos a inteligência a uma mulher.
Outro achado importante deste mesmo estudo é que desde muito cedo as meninas se sentem menos motivadas a desbravar novas áreas ou tentar se projetar em carreiras de sucesso. Os pesquisadores chegaram a essa conclusão ao apresentarem dois jogos às crianças, um que continha a descrição “para crianças que realmente são muito inteligentes” e outro para ser jogado por aqueles que “realmente se esforçam”. Aos 5 anos, tanto os meninos quanto as meninas ficaram mais propensos a escolher o primeiro jogo, para as crianças “mais inteligentes”. Aos 6 e 7 anos, porém, os meninos continuaram dispostos a escolher o primeiro jogo, enquanto as meninas preferiram jogar a segunda opção.
Ainda no ensino fundamental, o percurso acadêmico das meninas é fortemente desviado de áreas específicas, como a da chamada STEM (do inglês science, technology, engineering and mathematics – ciências, tecnologia, engenharia e matemática), o que implica em menos mulheres atuando em áreas profissionais correlatas e que são mais relacionadas ao estereótipo hegemônico de cientista.
Um reflexo desse afastamento é a frase: “eu não sou boa em matemática”. Quantos pais e mães ouviram isso de suas filhas em algum momento? O psicólogo americano Andrew Meltzoff, estudando o desenvolvimento de meninas, notou que desde os 7 anos de idade elas aprendem a identificar a matemática como “coisa de menino”, e que portanto não pertence a elas. Isso tem um efeito muito poderoso, o chamado viés de gênero em STEM. Num estudo feito em meninas adolescentes de 16 anos, que eram lembradas desse preconceito logo antes de realizarem testes de aptidão matemática concomitantes a um exame de ressonância magnética funcional, verificou-se que elas passavam a recrutar muito mais áreas cerebrais relacionadas ao processamento emocional do que ao raciocínio lógico. E isso fez com que elas tivessem um desempenho pior nesses testes.
O viés de gênero em STEM é algo tão notável que muitos acreditam que o cérebro feminino tem menor capacidade matemática, como se fosse algo estanque que não pode ser trabalhado e desenvolvido. E essa noção parece predominar em muitos países. No exame do PISA realizado pela OCDE em 2018, nota-se que entre os 73 países participantes, em apenas 23 as meninas vão melhor que os meninos em matemática. Isso reforça que o viés é algo muito prevalente. Além disso, comparando o mesmo teste PISA entre 2009 e 2018, vê-se que alguns países conseguiram reduzir essa lacuna de gênero em matemática. Ou seja, é algo cultural muito prevalente mas que pode ser alterado com intervenções eficientes.
Por fim, as meninas que conseguirem chegar à academia e resolverem fazer e viver de ciência invariavelmente se depararão com o “Efeito Matilda”[1]: verão seus trabalhos reconhecidos, publicados e referenciados como sendo de um homem, tendo seu protagonismo e autoria desconsiderados ou omitidos. Segundo uma pesquisa realizada pela editora de artigos científicos Elsevier, mulheres tendem a ser preteridas em chefias e cargos de pesquisador principal para colegas homens. Isto porque pesquisadores homens têm maior credibilidade e aceitabilidade no meio científico, favorecendo a obtenção de subsídios e incentivos. Ou seja, um ciclo vicioso se instaura.
E quais são as razões para esse viés de gênero que acompanha a trajetória escolar e acadêmica das meninas? Claro que aqui não há uma resposta simples. Estamos imersos numa sociedade que nos dá muitas pistas, facilmente observáveis, de que mulheres não pertencem à área STEM, a exemplo da escassez de personagens midiáticos femininos envolvidos em computação, poucas professoras de matemática e física, a associação de brinquedos de construção e computação “para meninos” – para mencionar alguns. Um fator importante também parece ser uma maior dedicação de professores e pais para os meninos do que para as meninas, em relação a esse tema. E há, ainda, a ansiedade matemática, que parece ser facilmente “transmitida” de professoras da educação infantil e ensino fundamental a suas alunas em especial.
Um caminho para a maior equidade de gênero na educação e na ciência, portanto, passa por desenvolvermos desde cedo, tanto em meninas quanto em meninos, a ideia de que sucesso, em qualquer área do conhecimento, não é uma habilidade inata, mas sim fruto de esforço e interesse pelo que se faz. Por isso, mais uma vez, precisamos lembrar que educação é direito de todos – e precisa ser lembrado também como um direito delas.
Por mais mulheres e meninas na ciência!
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