Por Claudia Costin (Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, Fundação Getúlio Vargas), pesquisadora associada da Rede CpE
Primeiras palavras
Estamos nos aproximando do final de 2023 com grandes e persistentes desafios na Educação: algumas conquistas obtidas em décadas anteriores na ampliação do acesso à escola encontram-se em risco frente ao desengajamento das aulas ocorrido nos quase dois anos letivos de escolas fechadas, perdas de aprendizagem afetaram a nossa já conhecida crise de aprendizagem e aprofundaram as desigualdades educacionais que já eram grandes antes da Covid-19. Além disso, a quase completa ausência do Ministério da Educação (MEC) na articulação da política nacional de educação durante os quatro anos do governo anterior e alguns avanços como a aprovação de uma Base Nacional Comum Curricular, incluindo a tentativa de se construir um Ensino Médio mais contemporâneo e efetivo, podem ser desconstruídos frente a emergências de todo tipo. Isso sem falar da Revolução Digital, que vem automatizando postos de trabalho, e, assim, aumentando o risco de precarização do trabalho ou de desemprego para grande número de jovens. É urgente enfrentar estes desafios e construir uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade para todos para sermos, um país menos desigual e competitivo.
O futuro e a crise
Não é possível se pensar a educação do futuro sem considerar a profunda crise que veio com a crise sanitária que vivemos até 2022. A pandemia de covid-19 trouxe-nos, de fato, sofrimentos próprios de uma crise multifacetada. Afinal, tratava-se não apenas de uma demorada crise tanto sanitária (com perdas de vidas e adoecimento) quanto econômica – o que resultou em desemprego e redução substancial de renda, institucional, com o fortalecimento de opções políticas populistas representando riscos à democracia – como também educacional, com cerca de 190 países tendo fechado total ou parcialmente suas escolas. Aqui no Brasil, fomos um dos países que mais tempo ficou com estabelecimentos escolares fechados e em sistema de rodízio de alunos, o que, dada a baixa conectividade e a situação de vulnerabilidade de muitas crianças e jovens, levou a uma descontinuidade no processo educativo, que, convenhamos, já apresentava desafios grandes anteriormente.
Com isso, tivemos não apenas perdas de aprendizagem, especialmente para os alunos que vêm de famílias mais vulneráveis, como foi desvelada a profunda desigualdade educacional que já vivíamos antes da pandemia.
Neste contexto, fomos levados a refletir não só sobre as emergências impostas pela situação, como sobre o que se deveria construir para um futuro pós pandemia. O que estava encoberto apareceu e nos convocou a enfrentar atuais e novos desafios educacionais do país, com uma clara percepção de que é a Educação de qualidade para todos que constrói um processo de desenvolvimento mais inclusivo e sustentável. E é sobre isso que escrevo este texto.
Em setembro de 2015, na Assembleia Geral da ONU, foram aprovados os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Vinham substituir e ampliar os antigos objetivos do milênio, em que se pensava em preparar os países para o século 21. Mais ambiciosos que os anteriores, os ODS tinham que lidar com novas questões que assolavam o planeta: apesar de avanços em alguns indicadores sociais e de redução de danos ao futuro do planeta, a lentidão das políticas públicas e a falta de ousadia na construção de soluções por parte dos decisores foi agravada com o advento do que se passou a denominar de 4ª Revolução Industrial ou revolução digital.
Este novo processo se traduz numa aceleração da automação e da robotização, com a Inteligência Artificial substituindo trabalho humano por algoritmos, o que pode ser simultaneamente uma bênção e uma maldição, dependendo das respostas regulatórias e das políticas públicas adotadas. Uma bênção, pois se bem coordenado, o processo pode eliminar trabalho em condições indignas e pouco saudáveis, como ocorreu, em alguns casos, com a mecanização precedente. Pode também trazer consigo uma redução da destruição de recursos naturais ao possibilitar processos de trabalho menos geradores de desperdícios ou de emissões.
Mas, apesar de se saber que, em etapas anteriores de mecanização, a criação de postos de trabalho, a partir de inovações tecnológicas, superou a destruição, há hoje um certo ceticismo em relação a essa possibilidade. Haverá trabalho para todos e, em caso positivo, não teremos um grande aumento da desigualdade social? Não sabemos ainda ao certo, mas tudo indica que, mesmo que a criação líquida de postos de trabalho seja positiva, eles não demandarão as mesmas competências e isso poderá resultar em importantes instabilidades e incertezas.
Ora, a mistura tóxica de desemprego com aumento de desigualdade social, agravados pela covid-19 e a falta de uma resposta adequada às várias dimensões da crise, não promete nem coesão social nem um futuro sustentável no sentido mais amplo do termo.
Da mesma maneira, os avanços em biotecnologia, que podem ter importante papel na prevenção e cura de doenças e assim possibilitar uma extensão da vida com qualidade, também podem representar um risco, se perdermos a visão de equilíbrio dos ecossistemas e daquilo que nos faz humanos. Há mesmo sentido em prolongar os anos de vida nos transformando em autômatos, com perda eventual da capacidade de sentirmos raiva, tristeza, frustração ou até paixão?
Mas vou me ater, nessa série, a duas questões relevantes para os próximos anos: como dotar as novas gerações das competências necessárias para a vida em sociedade, em especial para o trabalho e a cidadania global, e como neles instilar, por meio da educação, valores que contribuam para assegurar que sua existência não coloque em risco a dos atuais e futuros habitantes do planeta.
Para isso, retomo, de forma mais detalhada, o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 4, na busca da compreensão do que foi pactuado pelos países signatários do compromisso global como valores a serem promovidos e como fazer avançar a construção de uma educação que de fato prepare para o novo mundo do trabalho.
Educação e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 estabelece que, até 2030 (portanto, a menos de sete anos de quando escrevo este artigo), iremos assegurar uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizado ao longo da vida para todos.
Há nesse enunciado uma busca de equilibrar duas questões muito caras à Educação: excelência e equidade. Em outros termos, há uma promessa de que a qualidade que se quer construir não será obtida, como é costumeiro ocorrer, por meio de exclusões.
As metas em que se desdobra este objetivo deixam isso ainda mais claro: a ideia, por exemplo, de se garantir que todos concluam – e não apenas frequentem- a escola primária e secundária (no nosso caso, tanto os anos finais do Ensino Fundamental quanto o Ensino Médio, o que ainda não ocorre hoje) já é, em si mesma, ousada. Mas, completa o enunciado da meta 4.1, a educação deve ser “equitativa e de qualidade” e se traduzir em “resultados de aprendizagem relevantes e efetivos”. Ou seja, além de completar os estudos secundários, a Educação oferecida a crianças e jovens deve resultar em aprendizados importantes não apenas para alguns, mas para todos.
Entre as metas, inclui-se também uma muito importante para a equidade, a 4.2 que estabelece que, até 2030, programas de Primeira Infância de qualidade serão oferecidos para todos, inclusive a educação pré-escolar, de forma a preparar meninas e meninos para as etapas posteriores de escolaridade. É notório que uma educação infantil de qualidade – especialmente se acompanhada de intervenções de outras políticas públicas como a de atenção às gestantes (Saúde) e fortalecimento de vínculos familiares (Assistência Social) – tem o efeito de nivelar as diferenças socioeconômicas no desempenho escolar futuro.
Outras metas dizem respeito à igualdade de acesso a todos os níveis de escolaridade entre homens e mulheres, pessoas de diferentes grupos étnicos, permitindo também que isso ocorra para jovens oriundos de meios vulneráveis ou portadores de deficiências. Em muitos casos, para isso, ações afirmativas podem ser necessárias, dando apoio adicional a escolas ou alunos que dele necessitem. O ODS também inclui uma meta para assegurar que aumente, de forma expressiva, o número de jovens e adultos com habilidades relevantes – inclusive competências técnicas – para empregabilidade e empreendedorismo, o que será vital no contexto da 4ª Revolução Industrial, com a extinção progressiva de inúmeros postos de trabalho.
Mas não basta garantir direitos e um acesso qualificado ao mundo do trabalho. A Educação tem um papel ainda maior na construção de uma sociedade que respeite a vida, promova a paz e permita uma existência de qualidade para as novas gerações no planeta.
Assim, a meta 4.7 estabelece que, até 2030, vamos garantir “que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessários para promover o desenvolvimento sustentável”, aprendendo a desenvolver estilos de vida sustentáveis, a promover direitos humanos, igualdade de gênero, “uma cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural”.
Sim, é fundamental desenvolver as competências básicas nos jovens, como letramento, raciocínio matemático e científico e oferecer-lhes um repertório cultural relevante. Mas é bom lembrar que, no século 20, pessoas que receberam educação formal de qualidade para o padrão da época, inclusive ensino superior, foram capazes de perpetrar atrocidades em nome do orgulho nacional e de uma distopia excludente. Formar cidadãos globais capazes de enxergar a humanidade no outro, num processo empático, e não destruir os recursos do planeta num “consumerismo” desenfreado e apoiado em teorias anticientíficas é, neste século, um papel fundamental da escola.
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