Guia de atividades físicas para a população brasileira traz dicas que podem ajudar a reduzir o comportamento sedentário entre crianças e adolescentes em idade escolar.

Por Andrea Deslandes
Doutora em Saúde Mental (UFRJ) e coordenadora do Laboratório de Neurociência do Exercício (Lanex – laboratoriolanex.com).

Os acessos à educação física e ao esporte são direitos fundamentais de todo indivíduo e vão contribuir para a melhora da qualidade de vida, das saúdes física e mental, das funções cognitivas e do desempenho escolar de crianças e adolescentes, promovendo uma sociedade mais resiliente e menos violenta. Em 2015, a Unesco desenvolveu diretrizes para a Educação Física de Qualidade (EFQ), fundamentada na igualdade, salvaguarda e participação significativa, com o objetivo de desenvolver e consolidar práticas e políticas inclusivas que garantam a instrução física. A EFQ é fundamental para o fortalecimento de competências necessárias para os desafios do século XXI, favorecendo a inclusão e o desenvolvimento pleno.

Rachel / Unsplash

Expectativa x Realidade

Estima-se que 80% dos adolescentes sejam insuficientemente ativos, contribuindo para o aumento de doenças cardiometabólicas e transtornos psiquiátricos. O comportamento sedentário está associado ao aumento de doenças cardíacas e metabólicas, além de redução na expectativa de vida. Esse cenário tornou-se ainda pior neste período da pandemia de Covid-19, quando o necessário isolamento social contribuiu para o aumento de cerca de 20 a 30% do comportamento sedentário e para a redução de atividade física, associados ao aumento de sintomas depressivos e ansiosos. Se pudéssemos eliminar a inatividade física no mundo, teríamos uma redução de 6 a 10% de doenças crônicas não transmissíveis, como cânceres, diabetes tipo 2 e doenças cardíacas. Vale destacar aqui que a atividade física é qualquer movimento corporal e pode ser dividido em domínios (deslocamento, ambiente domiciliar, trabalho/estudo e lazer). Já o exercício físico é uma atividade física planejada, estruturada e repetitiva que tem como objetivo a melhora de alguma capacidade física. Por fim, o comportamento sedentário é o tempo durante o dia em que estamos acordados e ficamos sentados, reclinados ou deitados.

Juntos somos mais fortes e podemos chegar lá!

No “Plano de Ação Global sobre Atividade Física 2018-2030: pessoas mais ativas para um mundo mais saudável”, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu como meta a redução de 15% na prevalência global de inatividade física em adolescentes e adultos até 2030. Restam menos de dez anos, por isso precisamos agir rápido. É necessário garantir o acesso a ambientes apropriados e seguros para a realização da atividade física em seus quatro domínios: deslocamento, ambiente domiciliar, lazer e estudo/trabalho. O ambiente escolar tem um papel fundamental neste cenário, e alunos, familiares, professores e gestores tornam-se atores fundamentais para o alcance dessa meta. O exercício físico, principalmente aquele que visa a inclusão e que é planejado de forma lúdica e desafiadora, com maior demanda cognitiva e imprevisibilidade de tarefas, proporciona um ambiente favorável para o desenvolvimento de estratégias de ensino-aprendizagem que podem contribuir para a melhora das funções motoras, executivas e das competências socioemocionais de crianças e adolescentes.

O que a neurociência nos diz sobre a relação entre exercício físico e cérebro?

Estudos recentes mostram que a prática de exercícios físicos pode ser, também, uma grande aliada do professor na busca por um ambiente escolar com maiores oportunidades de aprendizado e equidade nos processos de aquisição de conhecimentos e de formação global. As pesquisas dos últimos vinte anos mostram que a prática de exercício físico pode ser uma ferramenta importante para a modulação da atividade e adaptação das estruturas do cérebro durante toda a vida. Um estudo publicado em 1999 pela pesquisadora Henriette Van Praag mostrou que camundongos que corriam em rodinhas de corrida voluntariamente tinham mais chance de produzir substâncias no cérebro que contribuíam para a maior quantidade de novas células no hipocampo, área relacionada ao aprendizado e à formação de novas memórias. Posteriormente, estudos mostraram que o aumento de novas células no hipocampo estava associado à melhora da memória e do aprendizado. Quando realizamos exercício físico, o músculo produz miocinas, que terão um papel importante para a manutenção de conexões, sobrevivência neuronal e neuroplasticidade. Além disso, áreas do encéfalo são ativadas para a programação e realização do movimento, assim como para a aprendizagem motora. Essas áreas também são associadas ao desempenho cognitivo, especialmente em tarefas que demandam a participação das funções executivas. Atualmente, muitas são as hipóteses neurofisiológicas que tentam explicar os efeitos benéficos do exercício físico no cérebro, mas as principais candidatas são o aumento de síntese e liberação de neurotransmissores (como a dopamina e noradrenalina), fatores tróficos (conhecidos pelas suas abreviaturas BDNF, IGF-1 e VEGF) e miocinas que contribuem para adaptações a longo prazo que favorecem o funcionamento cerebral.

Fazendo a ponte entre a pesquisa e o chão da escola

Muito se avançou no conhecimento sobre a relação entre ser ativo e obter melhores resultados em testes cognitivos e no desempenho escolar. Tanto o efeito agudo da atividade física, durante e após uma sessão de exercício físico, quanto o efeito crônico, após um longo período de manutenção das atividades, podem contribuir para modulações de humor e de desempenho cognitivo de crianças e adolescentes, tornando os alunos mais aptos a se desenvolverem de forma plena. Uma pesquisa realizada por nosso grupo de pesquisa no Laboratório de Neurociência do Exercício da UFRJ, investigou a relação entre o desempenho motor e cognitivo de crianças e adolescentes de oito a 14 anos de idade e verificou uma associação entre o melhor desempenho em testes de coordenação óculo-manual e o desempenho escolar. Também verificamos que a capoeira, uma atividade física com grande demanda motora e cognitiva e de grande popularidade e relevância cultural e histórica para o nosso país, pode contribuir para a melhora das funções executivas de crianças e adolescentes. Verificamos, ainda, que as turmas que realizavam mais aulas semanais de capoeira tiveram os melhores resultados na pontuação de funções executivas, que são associadas a melhores desfechos de saúde e melhor qualidade de vida. Nossos resultados estão de acordo com as mais recentes metanálises sobre o exercício físico e o desempenho cognitivo. Por meio do movimento, a escola pode potencializar seu papel de promoção de uma sociedade mais saudável, com equidade e incentivo para o desenvolvimento de alunos fisicamente instruídos e seguros. Atividades físicas, principalmente aquelas com engajamento cognitivo, imprevisibilidade, práticas diversas e motivadoras, favorecem ainda mais as funções executivas e o desempenho escolar. O conhecimento desenvolvido nas pesquisas realizadas nas escolas pode contribuir para a implementação de currículos inclusivos de EFQ.

Qualquer minuto conta; quanto mais ativo, melhor. 

Apesar de a pandemia ter sido um grande desafio para a promoção do estilo de vida ativo e saudável, a ciência brasileira deu um grande passo, marcando um golaço para o jogo de uma sociedade mais saudável. O professor Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, junto com uma equipe de 70 pesquisadores de todo o país, elaborou o primeiro Guia de atividade física para a população brasileira, com recomendações simples para a redução do comportamento sedentário e aumento dos níveis de atividade física em seus quatro domínios. O documento, lançado pelo Ministério da Saúde, é baseado em evidências científicas que consideram as especificidades de cada população e as diversidades regionais. É, também, um marco: apresenta sete capítulos de recomendações de atividade física para diferentes populações brasileiras, entre elas crianças e adolescentes, assim como um capítulo específico para a educação física escolar e recomendações para gestores. Além disso, o guia traz sugestões práticas para minorar o comportamento sedentário e reduzir o tempo de tela, com recomendações para cada faixa etária. Por exemplo, para crianças de um a cinco anos, as recomendações são de, no máximo, uma hora de tela por dia; já para crianças e jovens de seis a 17 anos, o Guia sugere o máximo de duas horas na frente de telas. Além disso, sugere que as crianças e os jovens se movimentem a cada uma hora de comportamento sedentário quando estiverem, por exemplo, realizando as tarefas da escola. Já em relação à atividade física, recomenda-se que crianças e adolescentes acumulem pelo menos 60 minutos de atividade física por dia, mesmo dividida ao longo do dia. Na educação física escolar, a recomendação do Guia é de pelo menos três aulas de 50 minutos cada, por semana.

Saltando barreiras e ganhando a corrida de revezamento

Apesar de todo o avanço no conhecimento sobre os benefícios da atividade física, muitas são as barreiras para colocar a teoria em prática. Mudanças de comportamento são complexas e dependem de fatores internos e externos do indivíduo, sendo importante pensar em estratégias que considerem as questões biopsicossociais, levando em consideração as experiências prévias, as motivações e as características de cada um. A mudança de comportamento passa por estágios que devem ser interpretados no contexto do indivíduo, do ambiente e da tarefa, onde deve ser promovida uma escuta ativa que promova o protagonismo para aquele que queremos movimentar. A tecnologia digital pode ser uma aliada e não a vilã da história: basta saber usá-la, como, por exemplo, promovendo a divulgação correta das informações relevantes, a avaliação e o monitoramento do movimento, bem como a redução de distâncias entre profissionais e alunos. Como exemplo, a utilização de aplicativos móveis, celulares, computadores e tecnologias do tipo wearable (relógios, pedômetros e acelerômetros) pode contribuir para o monitoramento do número de passos diários, que deve ser ao menos de 10 mil passos para adultos, 8 mil passos para idosos, 13 mil para crianças e 9 mil para adolescentes. A educação física deve estar integrada aos demais conteúdos, e a formação, capacitação e atualização do professor de educação física devem ser asseguradas e alinhadas às diretrizes da Unesco para a EFQ.

 

Sugestões para Leitura

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Guia de Atividade Física para a População Brasileira [recurso eletrônico]. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde, Departamento de Promoção da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde. 2021. 54 p. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf

Diamond, A. (2013). Executive functions. Annu Rev Psychol, 64, 135-168. doi:10.1146/annurev-psych-113011-143750

Diamond, A., & Ling, D. S. (2016). Conclusions about interventions, programs, and approaches for improving executive functions that appear justified and those that, despite much hype, do not. Dev Cogn Neurosci, 18, 34-48. doi:10.1016/j.dcn.2015.11.005

Diretrizes em educação física de qualidade (EFQ) para gestores de políticas. Brasília: UNESCO, 2015 http://unescoittralee.com/wp-content/uploads/2017/11/QPE-for-policy-makers-Portuguese.pdf

Global action plan on physical activity 2018–2030: more active people for a healthier world. Geneva: World Health Organization. 2018. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO.

Fernandes, V. R., Ribeiro, M. L., Melo, T., de Tarso Maciel-Pinheiro, P., Guimaraes, T. T., Araujo, N. B., . . . Deslandes, A. C. (2016). Motor Coordination Correlates with Academic Achievement and Cognitive Function in Children. Front Psychol, 7, 318. doi:10.3389/fpsyg.2016.00318

Matta Mello Portugal, E., Cevada, T., Sobral Monteiro-Junior, R., Teixeira Guimaraes, T., da Cruz Rubini, E., Lattari, E., . . . Camaz Deslandes, A. (2013). Neuroscience of exercise: from neurobiology mechanisms to mental health. Neuropsychobiology, 68(1), 1-14. doi:10.1159/000350946

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