Estudo com revisão de literatura na área da psiquiatria reforça a oportunidade do uso de tecnologias na hora do diagnóstico sem preconceitos.

Olhar o que já foi feito para refletir sobre o campo. Esse foi o objetivo de um artigo publicado em fevereiro pela pesquisadora associada Natalia Mota, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mota assinou como primeira autora e com outros colaboradores uma revisão de literatura nos temas psiquiatria e diversidade no Brasil.

O trabalho foi publicado na revista “Psychiatry Research” (sem acesso aberto) e aborda a rede em saúde pública distribuída pelo país – como os Centros de Atenção Psicossocial – que atendem pessoas que estão em sofrimento mental. Em entrevista ao site da Rede CpE, Mota explica que é importante olhar para as diferentes realidades brasileiras, principalmente para a condição de saúde mental de pessoas que sempre foram colocadas em situações de maior vulnerabilidade social, como populações indígenas e quilombolas. Em muitos momentos da história da psiquiatria – no mundo, não somente no Brasil –, pessoas vistas como diferentes foram tratadas de acordo com uma lógica hospitalocêntrica e medicamentosa, sem atenção a uma noção comunitária e de real inserção social.

No contexto escolar, Mota frisa que o trabalho pode contribuir para o debate sobre a diversidade, já que uma escola comporta muitas realidades e vivências. “Durante a infância e a adolescência, temos um papel fundamental do ambiente escolar na promoção da socialização não mediada pela família”, explica. Nesse sentido, o artigo também sugere que o uso de tecnologias – ou a psiquiatria computacional – pode ajudar a gerar diagnósticos que não reforçam estigmas e que respeitam a individualidade de cada criança, jovem ou adulto. Em seu Instagram, a pesquisadora teceu o seguinte comentário sobre o estudo: “Isso é ciência de país periférico, que foge da lógica colonial e expressa o conhecimento acumulado da nossa gente! Patologizar o diferente nunca mais!”.

 

Rede CpE: Você pode nos explicar como essa pesquisa publicada pode contribuir para a área da educação? 

Natalia Mota: A discussão sobre diversidade e como ela está associada ao sofrimento mental é importante para a sociedade como um todo, lembrando que o início dessa associação começa em diferentes etapas da vida. Durante a infância e a adolescência, temos um papel fundamental do ambiente escolar na promoção da socialização não mediada pela família. Nossa rede de atenção psicossocial integra ações de saúde com diversos setores da sociedade, e a parceria com as escolas do território é fundamental, principalmente para os CAPS infantis, que tratam dos casos de sofrimento mental em crianças e adolescentes com o sentido de reabilitação social. É importante para os profissionais de saúde mental entenderem como está a socialização do seu usuário na escola, assim como é muito importante para a escola saber que tem a retaguarda de uma equipe próxima, em seu território, que pode dar esse apoio para seus alunos. Nessa integração, a comunidade do entorno pode mudar sua forma de ver o sofrimento mental sem estigma, promovendo uma real inclusão.

No título e no resumo do trabalho, vocês mencionam o uso de tecnologias para realizar um diagnóstico sem preconceitos. A quais tipos de tecnologias vocês se referem e por que elas podem ser úteis? 

Natalia Mota: As tecnologias abordadas são relacionadas ao uso de algoritmos computacionais para analisar discurso e fala de pacientes para medir sintomas ligados ao sofrimento mental. Nós somos pioneiros no desenvolvimento desse campo. Meu primeiro artigo no tema completa dez anos este ano, enquanto o termo psiquiatria computacional foi cunhado dois anos depois em revisões que nos citam. Realizamos o desenvolvimento de aplicativos de processamento de linguagem natural sempre caracterizando a variabilidade em uma população em desenvolvimento típico em escolas, para entender a variabilidade daquilo que chamamos de “normal”. Essa é uma das nossas preocupações atuais: que as ferramentas utilizadas sejam inclusivas, que combatam e não reforcem estigmas. Se no desenvolvimento dessas ferramentas elas não são estudadas com representatividade, podemos confundir fatores que diferenciam nossa comunicação com diagnósticos mentais. Por exemplo, descobrimos que a fala em pessoas portadoras do diagnóstico de esquizofrenia produz trajetórias desconectadas, mas, no desenvolvimento, essa habilidade de falar de forma conectada é intimamente associada ao nível educacional, sendo um fator importante de confusão. É importante que não comecemos a confundir uma fala pouco conectada de um adulto que não teve oportunidade de ir para a escola e é saudável mentalmente com a fala pouco conectada de pessoas com sofrimento mental. Sem falar todas as outras formas de linguagem de tradições orais que ocupam uma trajetória diferente de desenvolvimento (como demonstramos em outro artigo).

O que vocês relataram sobre o cenário de tratamento psiquiátrico no Brasil?

Natalia Mota: O que é particular no Brasil é o fator histórico que nos tornou uma sociedade extremamente diversa, que recebeu várias ondas migratórias nos últimos séculos por motivos bem diferentes. Aqui, como em outros lugares do mundo, a psiquiatria iniciou a ver o fenômeno do sofrimento mental como uma condição médica, inicialmente asilando aqueles em sofrimento em instituições mentais. No entanto, ver comportamentos de outras culturas e não entendê-lo, ou marginalizar culturas diferentes do “padrão” e patologizar comportamentos levou nossa sociedade a asilar pessoas por motivos outros que não fossem sofrimento mental. Não entender o sofrimento mental como parte da sociedade impossibilita a reabilitação daqueles em sofrimento no convívio. Essas pessoas podem não se sentir acolhidas ou pertencentes aos múltiplos lugares que ocupamos em sociedade.

Qual rede de atendimento psicossocial vocês estudaram no artigo e por quê?

Natalia Mota: No Brasil, vimos crescer na década de 1970, juntamente com o movimento sanitarista que deu origem ao Sistema Único de Saúde (SUS), um movimento civil pela reforma psiquiátrica, que tinha como objetivo, entre outras coisas, garantir um tratamento humanizado àqueles em sofrimento mental, a reinserção na sociedade e o não encarceramento. Isso resultou na nossa rede de atenção à saúde mental, a Raps, que atua há 20 anos com diversos dispositivos de cuidados em saúde mental aliados à medicina comunitária e rompe com a lógica hospitalocêntrica do cuidado em saúde mental para uma lógica comunitária. A ideia é entender que o sofrimento mental causa barreiras para a socialização e que os cuidados múltiplos em saúde mental passam pela reabilitação psicossocial. Para isso, em um país tão complexo e diverso, é necessário conhecer muito bem essas realidades diversas que temos no país, onde entra a noção de território como espaço geográfico dinâmico, habitado por pessoas que dão a oportunidade de acolhimento para as suas diversas culturas. Entender essas peculiaridades de cada território é um fator fundamental para situar o cuidado e a reabilitação.

Ao longo dos vinte anos, vimos a ascensão impactante dessa Rede em capitais. Recentemente, tivemos um importante avanço na interiorização da rede, havendo uma maior cobertura de assistência em centros pelo interior do país. No geral, há muito pouco investimento para manter um quantitativo de dispositivos no Brasil como um todo. Cada região do país tem seus desafios, mas focamos, no artigo, em falar de populações mais vulneráveis pelo próprio contexto histórico de marginalização de suas culturas, como populações indígenas e quilombolas. A compreensão superficial das características de cada grupo leva a situações como medicalização de situações sociais sem efetividade no cuidado, tornando crônicas as causas de sofrimento e perdendo oportunidades de intervenções comunitárias que pudessem ser efetivamente preventivas.

Essa rede é importante para a educação brasileira?

Natalia Mota: A rede trabalha em sinergia com os múltiplos setores da sociedade. Se para um indivíduo fizer sentido trabalhar sua inserção na rede educacional, então isso deve ser planejado em conjunto com o setor de cuidado – como um Centro de Atenção Psicossocial infantil, por exemplo -, com as escolas no território, planejando ações em conjunto para a reinserção de indivíduos com alguma condição mental. Conviver com o diferente na escola (como espaço social desse território) promove uma mudança de percepção nesse território dessa própria condição, promovendo acolhimento social e prevenção de atitudes preconceituosas que causam sofrimento mental.

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