Por Rosângela Gabriel (coordenadora do PPG em Leitura, da Unisc/RS), pesquisadora associada da Rede CpE

Não é necessário dizer que estamos vivendo uma revolução tecnológica nos modos de preservar e disseminar informações. A presente revolução digital muitas vezes é comparada à outra, decorrente da criação da prensa móvel por Johann Gutenberg no século XV, que propiciou o surgimento da imprensa e a circulação das ideias por meio da escrita de forma impensável até aquela época. Se hoje eu leio um texto na tela do computador ou do celular, em alguns segundos posso compartilhá-lo com colegas, alunos, familiares, amigos. Imagine se para compartilhar um texto, você precisasse copiá-lo a mão, palavra por palavra, uma cópia para cada pessoa para quem quisesse enviar o texto? E se esse texto fosse um livro? Talvez você levasse anos para copiar um livro e ter duas cópias de uma mesma obra! Se ainda não assistiu ao filme “O Nome da Rosa”, fica a dica, para entender como era a relação das pessoas com os livros no século XIV, antes da revolucionária criação de Gutenberg!

Do século XVI até o final do século XX, os livros eram os principais instrumentos para a conservação e difusão do conhecimento. Atualmente, outras ferramentas associadas à internet compartilham essa função, com vantagens evidentes, como a celeridade, o baixo custo e a praticidade. Por isso, muitos se perguntam se o livro ainda merece um lugar de destaque no cenário intelectual e educacional, ou se se trata de um objeto anacrônico, que sobrevive graças ao sentimento nostálgico dos menos adaptados às novas tecnologias. Este artigo não traz uma previsão quanto ao destino do livro, mas enseja reflexões sobre os poderes do livro e da leitura para a aquisição de conhecimentos, desenvolvimento e preservação da cognição humana.

Adultos escolarizados, como os leitores da Coluna Conecta, não se dão conta de que quando estão lendo na tela do computador ou celular, ou na página de um livro, estão diante de traços que representam a linguagem verbal, que por sua vez remete a uma rede de memórias. Por exemplo, quando leio a palavra “banana”, não estou vendo ou comendo uma banana, mas ao ler a palavra, associo a imagem acústica da palavra (já armazenada na minha memória) e posso lembrar do formato da fruta e até ficar com vontade de comer uma banana. Portanto, os livros e a leitura têm o poder de nos fazer pensar em coisas que não estão presentes fisicamente, ou mesmo pensar em algo que não tenha realidade física, como o conceito de justiça, por exemplo: ideias emergem mentalmente por meio de uma rede de conexões neuronais suscitadas pelos livros e pela leitura.

Ainda que os textos escritos surjam inicialmente como uma representação da linguagem oral, seu uso recorrente estabelece uma série de convenções e refinamentos. Um trecho da canção “Quase sem querer”, do grupo Legião Urbana, diz assim: “Sei que, às vezes, uso / Palavras repetidas / Mas quais são as palavras / Que nunca são ditas?” Na oralidade, não nos preocupamos com a repetição de palavras e expressões. Já na escrita, evitamos repetições usando sinônimos, organizamos o pensamento em parágrafos que possam conduzir o leitor ao longo do texto, caprichamos para que o texto possa ser entendido e, quem sabe, apreciado pelo leitor. Portanto, a escrita e a leitura têm o poder de aprimorar a linguagem verbal. Assim, quando lemos um livro, somos expostos a palavras e construções sintáticas inéditas, a narrativas organizadas a partir de uma lógica proposta pelo autor… Tudo isso enriquece nosso repertório linguístico e cultural, num processo cumulativo que vai adensando as representações  da linguagem no cérebro.

Entretanto, ainda que ler possa parecer natural para mim e para você, a aprendizagem da leitura é extremamente complexa, tanto para uma criança quanto para um adulto, pois o cérebro humano não foi programado geneticamente para ler, mas é capaz de adaptar estruturas internas já existentes a partir das demandas culturais. Assim, para aprender a ler um sistema de escrita alfabético, precisamos decompor a linguagem oral em pedacinhos. Num primeiro momento, podemos identificar três pedacinhos na palavra “ba+na+na”. Em seguida, podemos comparar o som inicial de “banana” com o som inicial de “boca”, e perceber que há um segmento inicial idêntico. Agora, já podemos associar esse som inicial à sua representação gráfica “B b B b  “, e assim vamos analisando e decompondo a linguagem oral, associando sons (fonemas) às letras que os representam na escrita (grafemas). Essa aprendizagem não é intuitiva e precisa ser conduzida sistematicamente por professores experts em alfabetização, a fim de que, após alguns meses de trabalho árduo, as crianças comecem a ganhar fluidez na leitura, ou seja, consigam ler em um ritmo que permita que compreendam as frases e os textos que estão lendo. Portanto, a leitura e os livros têm o poder de transformar as estruturas internas do nosso cérebro!

Cada uma das atividades cognitivas envolvidas na leitura (associar fonemas e grafemas, reconhecer palavras, acessar significados, integrar informações…) exige que o cérebro adquira e recrute vários tipos de memórias. As pesquisas nos mostram que a leitura auxilia a desenvolver, exercitar e preservar memórias, funcionando como um antídoto, ou uma terapia, contra os efeitos do envelhecimento. O pesquisador da memória Iván Izquierdo, em seus livros e entrevistas, reafirmou inúmeras vezes que a leitura é a melhor forma de preservar as memórias, exatamente por envolver simultaneamente vários sistemas mnemônicos. Portanto, os livros e a leitura têm o poder de nos fazer adquirir, transformar, acessar, recuperar, integrar, exercitar e preservar memórias!

Talvez o leitor desta coluna esteja pensando: se os livros e a leitura compartilham tantos poderes, há necessidade de lermos livros propriamente ditos, ou basta lermos as mensagens do celular, as placas de trânsito, as embalagens dos produtos no supermercado? E talvez nessa questão esteja uma das mais importantes reflexões que eu gostaria de suscitar a partir deste texto: os livros têm o poder de nos fazer pensar em profundidade, de desenvolver raciocínios complexos, de considerar várias variáveis. Por exemplo, quando lemos um livro de literatura, transportamo-nos para um mundo imaginado, com personagens com características únicas, que vivem situações que nós não vivenciamos na nossa vida, mas que podemos imaginar e sentir como se nossas fossem! Todas as experiências e os pensamentos suscitados pela leitura de obras literárias nos ajudam a desenvolver uma nova consciência de nós mesmos e também nos ajudam a compreender as subjetividades e os estados mentais dos outros (as suas crenças e estados emocionais).

Por isso, seja no suporte papel, seja na tela de um computador, é fundamental que preservemos o hábito da leitura profunda, instigante e desafiadora, que exige concentração, que desenvolve o pensamento complexo, que não entrega respostas em uma bandeja, mas que contrapõe argumentos e variáveis, e faz surgir novas perguntas… E para potencializar ainda mais o poder de pensar em profundidade proporcionado pelos livros, vale a pena criar oportunidades para conversar sobre o que lemos, compartilhar pensamentos e interpretações (e não apenas postagens e cards nas redes sociais), socializar informações e fechar com chave de ouro essa experiência intelectual, tornando-a também social e interativa! E isso pode ser feito em casa, na sala de aula, na biblioteca, nos clubes de leitura… mas isso já é assunto para outra coluna!

 

Para saber mais

Em 2023, a Cátedra Unesco de Ciência para Educação realizou webinários chamados de “Diálogos entre Ciência e Educação” com a participação de especialistas brasileiros e estrangeiros. Foram sete encontros desde março, sendo que a última palestra do ano ocorreu no dia 29 de novembro, com o tema O Poder do Livro. Portanto, se o texto desta coluna te “pegar”, fica o convite para assistir (e curtir) também o vídeo!

Confira todos os webinários na nossa playlist no Youtube.

Cátedra Unesco

A Cátedra Unesco de Ciência para Educação busca promover integração internacional, estabelecendo uma rede de produção e divulgação de conhecimento sobre ciência para educação entre pesquisadores latino-americanos, norte-americanos e europeus durante quatro anos. Hospedada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) junto com o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e operada pela Rede CpE, possui representantes da Argentina, Bélgica, Canadá, Chile, Cuba, Finlândia, França, Reino Unido, Estados Unidos, Uruguai e, claro, Brasil.

 

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A Rede Nacional de Ciência para a Educação tem por objetivo integrar esforços dos vários laboratórios e pesquisadores do Brasil, de qualquer especialidade, cujo trabalho possa ser aplicado à Educação.

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