Por Naercio Menezes Filho (Insper e FEA-USP), pesquisador associado da Rede CpE

O Brasil tem dois problemas que persistem há décadas: alta desigualdade e baixa produtividade. Para lidar com estes dois problemas de uma só vez, temos que investir nas habilidades cognitivas e socioemocionais das crianças que nascem em famílias mais pobres e melhorar a qualidade das escolas públicas. Só assim estas crianças continuarão na escola até o final do ensino médio, entrarão no ensino superior, encontrarão um emprego com carteira assinada ou empreenderão, contribuindo para o crescimento da produtividade, aumentando as receitas e diminuindo os gastos do governo e a desigualdade.

Assim, para que o Brasil possa crescer de forma sustentada com justiça social, é necessário que tenhamos mais igualdade de oportunidades. Todas as crianças que nascem no Brasil têm que ter as mesmas oportunidades para realizar seus projetos, independentemente do seu local de nascimento, cor, sexo e condição social.  Apesar de termos avançado bastante nas políticas sociais nas últimas décadas, continuamos muito distantes dessa realidade. No Brasil, ter sorte na “loteria de vida”, ou seja, nascer numa família com boas condições financeiras, ainda é um dos principais fatores que explicam o sucesso das pessoas quando adultas.

Por isso, enquanto não igualamos as oportunidades desde o nascimento, é necessário fazer algo para aumentar as oportunidades dos jovens que, apesar de terem nascido em famílias mais pobres, superam todas as barreiras e conseguem ter um bom desempenho nos exames vestibulares. É para isso que foram criadas as cotas.

A Lei de Cotas foi sancionada em 2012 e determinou a reserva de cinquenta por cento das vagas das instituições federais de ensino superior para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, beneficiando também, dentro deste grupo, os estudantes com renda familiar inferior a um salário-mínimo e meio e os pretos, pardos ou indígenas. A lei também prevê uma revisão do sistema, que deverá acontecer este ano.

Será que as cotas devem continuar?

Sim, pois as cotas estão transformando o ensino superior brasileiro. A porcentagem de jovens negros de 17 a 22 anos que frequentam o ensino superior passou de apenas 1,2% em 1992 para cerca de 16% em 2020. Eles já são metade dos que cursam ensino superior no Brasil. A proporção de negros e indígenas adultos que têm ensino superior completo aumentou de apenas 1,9% em 1992 para 13,5% em 2020.

Assim, as cotas estão começando a mudar a composição dos alunos nas faculdades públicas e dos profissionais com ensino superior no mercado de trabalho. Além disto, os cotistas (tanto os alunos como os formados) tornaram-se referência para as crianças negras e pobres, fazendo-as acreditar que é possível ter sucesso profissional apesar das adversidades.

Por fim, as cotas não diminuíram o aprendizado nas universidades públicas, diferentemente do que suponham seus opositores. Várias pesquisas mostram que as notas dos alunos cotistas são semelhantes às dos não-cotistas, mesmo nos cursos mais concorridos. As taxas de evasão também são bastante parecidas nos dois grupos. Ou seja, as cotas aumentaram a diversidade nas universidades sem perda de qualidade. Como isto ocorreu?

Ocorre que, na verdade, o sistema de cotas é mais meritocrático do que o sistema tradicional no processo de seleção de alunos, ao reconhecer que há características importantes que explicam o desempenho do aluno nos cursos de graduação e que não são levadas em conta nos exames vestibulares tradicionais. Os estudantes cotistas têm que superar diversos obstáculos ao longo da vida para terem um bom desempenho no vestibular, como a menor qualidade do sistema público de ensino, a discriminação contra negros que existe nas escolas e na sociedade como um todo, assim como a falta de renda para comprar bens culturais e viajar.

Assim, os cotistas que conseguem ter um bom desempenho, apesar destas adversidades, têm em média mais determinação, garra e resiliência do que os alunos que têm desempenho parecido no vestibular tendo nascido em famílias ricas. E essas habilidades são fundamentais para ser aprovado nas disciplinas mais exigentes do sistema universitário. Assim, as cotas selecionam melhor os alunos para o nível superior. Isso explica o porquê das notas médias não terem diminuído depois das cotas.

Quando conseguirmos igualar as oportunidades desde o nascimento, melhorar a qualidade das escolas públicas e mudar o formato dos vestibulares, as cotas não serão mais necessárias. Nesse momento, a renda e a raça dos alunos não serão mais determinantes para explicar o ingresso no ensino superior.  Até lá (se é que este momento chegará algum dia), as cotas são necessárias, tornam o sistema mais meritocrático e, portanto, devem continuar pelos próximos dez anos, pelo menos.

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